19 dezembro 2006

Ó GLORIOSA SENHORA

Conforme prometido, aqui fica a paráfrase vicentina de O Gloriosa Domina. Actualizou-se a palavra madre para mãe, mesmo sabendo que isso fere o ritmo.


Ó GLORIOSA SENHORA DO MUNDO

Ó gloriosa Senhora do mundo,
Excelsa Princesa do Céu e da Terra,
Formosa batalha de paz e de guerra,
Da Santa Trindade secreto profundo!

Santa esperança, ó Mãe de Amor,
Ama discreta do Filho de Deus,
Filha e Mãe do Senhor dos Céus,
Alva do dia com mais resplendor!

Formosa barreira, ó alvo e fito,
A quem os Profetas direito atiravam,
A Ti gloriosa os Céus esperavam,
E as Três Pessoas, um Deus infinito.

Ó cedro dos campos, estrela-do-mar,
Na serra ave Fénix, uma só amada,
Uma só sem mácula e só preservada,
Uma só nascida, sem conto e sem par!

Do que a Eva triste ao mundo tirou
Foi o teu fruto restituidor;
Dizendo-te ave! o embaixador,
O nome de Eva te significou.

Ó porta dos paços do mui alto Rei,
Câmara cheia do Espírito Santo,
Janela radiosa de resplendor tanto,
E tanto zelosa da divina Lei!

Ó mar de ciência, a tua humildade
Que foi senão porta do céu estrelado?
Ó fonte dos Anjos, ó horto cerrado,
Estrada do mundo para a Divindade.

Quando os Anjos cantam a glória de Deus,
Não são esquecidos da glória tua;
Que as glórias do Filho são da Mãe sua,
Pois reinas com Ele na corte dos Césus!

Pois que faremos os salvos por Ela,
Nascendo em miséria, tristes pecadores,
Senão tanger palmas e dar mil louvores
Ao Pai, ao Filho e Espírito e a Ela!

18 dezembro 2006

Ó GLORIOSA SENHORA

No Auto Pastoril Português, de Gil Vicente, encontra-se uma bela paráfrase ao hino litúrgico O Gloriosa Domina (Ó Gloriosa Senhora); foi autor deste hino mariano o bispo de Poitiers Venâncio Fortunato, que morreu em princípios do séc. VII. Coloco hoje aqui o texto latino com uma tradução/adaptação portuguesa. Talvez amanhã, colocarei a paráfrase vicentina. É como que uma preparação para o Natal.

O GLORIOSA DOMINA

O gloriosa domina
excelsa super sidera,
qui te creavit provide,
lactas sacrato ubere.


Quod Eva tristis abstulit,
tu reddis almo germine;
intrent ut astra flebiles,
sternis benigna semitam.


Tu regis alti ianua
et porta lucis fulgida;
vitam datam per Virginem,
gentes redemptae, plaudite.


Patri sit Paraclito
tuoque Nato gloria,
qui veste te mirabili
circumdederunt gratiae.
Amen.


Ó GLORIOSA SENHORA

Ó gloriosa Senhora,
Mais alta que as estrelas,
Vós amamentais ao vosso sagrado peito
Aquele que Vos criou.

O Vosso prodigioso ventre
Devolve-nos o que Eva roubou:
Vós abris, misericordiosa, um caminho
Para entrarem no Céu os pobres homens.

Vós sois a porta do grande Rei,
A entrada brilhante da luz;
Ó povos libertos, aplaudi
A vida que a Virgem vos deu!

Glória ao Pai e ao Espírito Santo
E ao vosso Filho também!
Eles Vos envolveram
Na maravilhosa veste da graça.
Ámen.

15 dezembro 2006

O SANTO QUE VAI NASCER DE TI SERÁ CHAMADO FILHO DE DEUS

Há só um Deus. Deus exclui Deuses: depois dele, só há criaturas.
«Não há outro Deus além de Mim», Isaías 45, 21.
O Cristianismo, na linha do Judaísmo que o precedeu, sempre foi peremptório na afirmação da unicidade divina. Mas acrescentou: um só Deus, sim, na sua essência única, mas em três pessoas: Deus é uma Trindade – a Trindade Santíssima.
O Espírito de Deus já é mencionado no AT, por exemplo, logo no início do Génesis: «o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas».
Onde porém mais proximamente, mas misteriosamente, há a sugestão da Trindade é sem dúvida naquele episódio do início do cap. 18 também do Génesis:
«O Senhor apareceu a Abraão nos carvalhos de Mambré, quando ele estava assentado à entrada de sua tenda, no maior calor do dia. Abraão levantou os olhos e viu três homens de pé diante dele. Levantou-se no mesmo instante da entrada de sua tenda, veio-lhes ao encontro e prostrou-se por terra».
Se se prostrou por terra, estava em adoração.
Mas tudo isto fica a uma distância quase infinita do NT. À Virgem de Nazaré, o Anjo anuncia: «O Santo que vai nascer de ti será chamado Filho de Deus».
O Evangelho é o anúncio do Emanuel, Deus-connosco. O Filho humilhou-se assumindo a nossa natureza, para nos mostrar o caminho para o Pai. E para isso redimiu-nos, anulando a condenação que pairava sobre a humanidade desde o «princípio».
Celebrar o Natal é colocar-se no começo do caminho que o Filho vai percorrer e que, pela Cruz, leva à Ressurreição. O nosso caminho.
«Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados!»

07 dezembro 2006

À PURÍSSIMA CONCEIÇÃO DE NOSSA SENHORA

Na edição da obra poética de Bocage que possuo, «À puríssima Conceição de Nossa Senhora» é o sexto poema dos «Idílios e Cantatas». Compõe-se ele duma visão introdutória, de raiz neoclássica, em que Elmano assiste à vitória da nova Eva sobre o Dragão infernal, e de um outro poema, em redondilha menor, que complementa a visão, e que é sem dúvida tradução/adaptação dum hino mariano.

Que espectáculo, ó céus! Eu velo?... Eu sonho?...
Que diviso!... Onde estou!... Purpúrea nuvem
Ante os olhos atónitos me ondeia
E chuveiros de luz despede à terra!
Mais bela que o fulgor que ao sol percorre,
Alta matrona augusta,
Do vapor luminoso
Que os Zéfiros detêm nas ténues plumas,
Quão risonha contempla o baixo mundo!
Áureas estrelas congregadas brilham
No rútilo diadema
Que a fronte majestosa Lhe guarnece;
Áureas estrelas semeadas brilham
Nas roçagantes vestes,
Cor do estivo clarão que filtra os ares!
De alados génios cândida falange
Reverente
A ladeia,
E pelas níveas dextras balançados,
Pingue, flagrante aroma, em honra à diva,
Os fumosos turíbulos derretem…
Mas que feroz dragão lhes jaz às plantas,
Sangue a boca medonha, os olhos fogo!...
Rábido arqueja, túmido sibila,
Baldadas forças prova
Contra o pé melindroso
No colo inerme, a cerviz calcada,
Que rubras conchas escabrosas forram:
Enrosca, desenrosca a negra cauda
E em hórridos arrancos desfalece…
Oh triunfo! Oh mistério! Oh maravilha!
Oh celeste heroína! A sacra turma,
Os entes imortais que Te rodeiam
Modulam tua glória em altos hinos
Que entre perfumes para os astros voam…
Eis no leito arenoso as vagas dormem,
Rasas cedendo à música divina:
Pio ardor pelas fibras me serpeia
E encurvado repito os santos versos:

Ó Virgem formosa
Que domas o Inferno
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.

Ilesa notaste
Do mundo o naufrágio,
Da culpa o contágio
Por ti não lavrou.

Nas tuas virgíneas
Entranhas sagradas,
Do Céu fecundadas
O Verbo encarnou.

A grande vitória
Do género humano
Contra este tirano
De Ti começou.

Depois de lograres
Triunfo completo,
Cumprido o projecto
Que o Céu meditou,

Cresceram nos astros
Os vivas e os cantos,
E as fúrias, os prantos
O abismo dobrou.

Ó Virgem formosa
Que domas o Inferno
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.

03 dezembro 2006

MEDITAÇÃO FILOSÓFICA

Na história da literatura portuguesa há alguns poetas e ficcionistas que manifestaram certa apetência para a reflexão filosófica; lembrem-se Camões, Antero, Pessoa, V. Ferreira, etc.
Nenhum deles contudo possuiria formação específica na área; todos seriam mais ou menos autodidactas, com os benefícios e malefícios próprios dessa condição.
Pessoa foi dado a repetidas leituras de filósofos. Com a assinatura de Álvaro de Campos, apresento hoje um poema de meditação filosófica que o meu professor de Ontologia gostava de citar. Há nele erros, mesmo graves, mas há também aspectos muito válidos. Veja-se:

Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível - a de haver uma realidade.
Perante este horrível ser que é haver ser.
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
- Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto construem, desfazem ou se construi ou desfaz através deles,
Se empequena!
Não, não se empequena... se transforma em outra coisa -
Numa só coisa tremenda e negra e impossível.
Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino -
Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstractas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar porque é um tudo,
Porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa, porque há qualquer coisa!

Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas ideias que tremo, com a minha consciência de mim.
Com a substância essencial do meu ser abstracto
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!

Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?

Ah, não, nenhuma - nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gémeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gémeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente do mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a Morte? Como, se tudo é o mesmo mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.