29 agosto 2007

BOCAGE, AUTOR DE POESIA RELIGIOSA

Bocage, apesar da vida libertina em que se afundou vários anos, nunca inteiramente se afastou do Cristianismo; ele mesmo o declara num soneto, dirigindo-se a Deus:

Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.

Mas depois de vencido o “desatino das paixões”, no período final da sua breve vida – morreu com 40 anos – operou-se nele uma reviravolta muito marcada, regressando a uma vivência cristã entusiasta.
São desse período duas boas dezenas de poemas que fazem dele um poeta de tema religioso notável. Os mais deles são sonetos, mas há depois umas quatro odes que cantam Nossa Senhora, além de um trecho traduzido. Ao todo, disposta numa só coluna, a colecção destes textos enche dezanove páginas.
Em qualidade eles não são de nenhum modo inferiores ao resto da produção do poeta – se é que não lhe são superiores.
Quanto ao conteúdo, ora fazem afirmações de ordem teológica geral ora reflectem a sua vivência pessoal da fé. Os sonetos, mais próximos desta segunda orientação, serão porventura mais interessantes pela original actualidade dos temas abordados. Vejam-se alguns títulos: A existência de Deus provada pelas obras da criação, Contradições do ateísmo, Hino a Deus, Confiança na misericórdia divina, O retrato de Deus desfigurado por ministros embusteiros, Tentativa de suicídio combatida pelas lembranças da Eternidade, Vendo-se exposto a tribulações imerecidas, Afectos dum coração contrito, Sentimentos de contrição e arrependimento da vida passada, Ditado entre as agonias do seu trânsito final, Invocando o amparo de Maria Santíssima, A Paixão de Jesus Cristo, etc.
O conceito de Deus não é no poeta muitas vezes tão evangélico como se desejaria; parece antes colhido em páginas talvez mal digeridas do Antigo Testamento ou mesmo de origem pagã. É possível que, apesar de tudo, ainda supere o da pregação comum do seu tempo. No Hino a Deus, por exemplo, o leitor tem algumas dificuldades em identificar o Deus bíblico, que é Amor:

Pela voz do trovão corisco intenso
Clama que à Natureza impera um Ente,
Que cinge do áureo dia o véu ridente,
Que veste da atra noite o manto denso.

Pasmar na imensidade é crer o Imenso;
Tudo em nós o requer, O adora, O sente;
Provam-Te olhos, ouvidos, peito e mente?
Númen, eu ouço, eu olho, eu sinto, eu penso!

Tua ideia, ó Grão-Ser, ó Ser divino,
Me é vida, se me dão mortal desmaio
Males que sofro e males que imagino:

Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.

Mas esta perspectiva de Deus, que parece aproximá-Lo dum Júpiter, vinca ainda mais a originalidade, essa sim cristã, dum poema como O retrato de Deus desfigurado por ministros embusteiros ou Confiança na misericórdia divina, onde o autor rejeita o conceito de um Deus distante das pessoas, só omnipotente, de quem se ignora a dimensão paternal. Veja-se o segundo destes poemas:

Lá quando a Tua voz deu ser ao nada,
Frágil criaste, ó Deus, a Natureza;
Quiseste que aos encantos da belezaAmorosa paixão fosse ligada:

Às vezes em seus desgostos desmandada,
Nos excessos desliza-se a fraqueza;
Fingem-Te então com ímpeto e braveza
Erguendo contra nós a dextra armada.

Ó almas sem acordo e sem brandura,
Falsos órgãos do Eterno! Ah!... Profanai-O,
Dando-Lhe condição tirana e dura!

Trovejai, que eu não tremo e não desmaio;
Se um Deus fulmina os erros da ternura,
Uma lágrima só Lhe apaga o raio.

A sua vivência da relação com Deus leva-o a pôr frontalmente em causa o pensamento teológico dominante, o que é uma ousadia louvável, mesmo se às vezes feita em termos menos aceitáveis, nascidos do seu pendor de polemista.
A dimensão mais propriamente católica destes poemas descobre-se sobretudo nos textos sobre Nossa Senhora e mesmo em A Paixão de Jesus Cristo, que se segue:

O Filho do Grão-Rei, que a monarquia
Tem lá nos Céus, e que de Si procede,
Hoje, mudo e submisso, à fúria cede
De um povo, que foi Seu, que à morte O guia.

De trevas, de pavor se veste o dia,
Inchado, o mar o seu limite excede,
Convulsa a terra, por mil bocas pede
Vingança de tão nova tirania.

Sacrílego mortal, que espanto ordenas,
Que ignoto horror, que lúgubre aparato!...
Tu julgas teu Juiz!... Teu Deus condenas!

Ah, castigai, Senhor, o mundo ingrato:
Caiam-lhe as maldições, chovam-lhe as penas,
Também eu morra, que também vos mato.

Leia-se também o soneto Invocando o amparo de Maria Santíssima, onde o seu habitual imaginário hiperbólico quase se anula, numa atitude de simplicidade filial:

Tu, por Deus entre todas escolhida,
Virgem das virgens; Tu, que do assanhado
Tartáreo monstro com Teu pé sagrado
Esmagaste a cabeça entumecida;

Doce abrigo, santíssima guarida
De quem Te busca em lágrimas banhado,
Corrente com que as nódoas do pecado
Lava uma alma que geme arrependida;

Virgem, de estrelas nítidas c’roada,
Do Espírito, do Pai, do Filho Eterno,
Mãe, Filha, Esposa e, mais que tudo, amada:

Valha-me o teu poder e amor materno;
Guia este cego, arranca-me da estrada
Que vai parar ao tenebroso inferno!

A imaginação de Elmano comprazia-se em realidades apocalípticas, de grande efeito. Os poemas dedicados a Nossa Senhora haviam por isso de lhe ser particularmente queridos, pois gosta de A apresentar como a vencedora de Satã, num cenário algo dantesco. O “tartáreo monstro” vencido (que no soneto apareceu de fugida) surge sempre nas quatro odes À Puríssima Conceição de Nossa Senhora, A Santíssima Virgem, a Senhora da Encarnação, À Puríssima Conceição de Nossa Senhora e À Imaculada Conceição de Nossa Senhora.
Exprime-se assim em A Santíssima Virgem, a Senhora da Encarnação:

Acatamento em si e audácia unindo,
Sobre o jus de imortal firmando os voos,
A impávida Razão, celeste eflúvio,
Se eleva, se arrebata.
Por entre imensa noite e dia imenso
(Mercê do condutor, da Fé, que a anima)
Sobe de céus em céus, alcança ao longe
O grão Princípio dos princípios todos.

Além do firmamento, além do espaço
Que, por lei suma, franqueara o seio
A mundos sem medida, a sóis sem conto,
Imóvel trono assoma:
De um lado e de outro lado é todo estrelas;
Vence ao diamante a consistência, o lume;
Absortos cortesãos o incensam curvos,
Tem por base e dossel a eternidade.

Luz, de reflexos três, inextinguível,
Luz, que existe de si, luz de que emanam
A natureza, a vida, o fado, a glória,
Dali reparte aos entes
Altas virtudes, sentimento augusto;
Aos entes, que na Terra extraviados,
Das rebeldes paixões entre o tumulto
Ao grito do remorso param, tremem.

Filho do Nada! Um Deus te vê, te escuta!
Seus olhos imortais do empíreo cume
(Aos teus imensidade, aos d'Ele um ponto)
Atentaram teus dias,
Teus dias cor da morte, ou cor do Inferno;
De alma em alma grassando a peste avita;
Hálito de serpente enorme, infesta,
Da primeva inocência a flor crestara:

Aos dois (como Ele) do Universo origem
Diz o Nume em si mesmo: — «O prazo é vindo;
Cumpra-se quanto em nós disposto havemos.»
Eis o Espírito excelso,
Radiosa emanação do Pai, do Filho,
Mística pomba de pureza etérea,
A Donzela Idumeia inclina os voos,
Pousa, bafeja, e diviniza o puro.

Tu, Verbo, sobrevéns; aérea flama
Com tanta rapidez não sulca o pólo!
Eis alteado o grau da humanidade;
Eis fecunda uma virgem:
A redenção começa, o Deus é homem.
Da graça, da inocência, oh paz, oh risos,
Do Céu vos deslizais, volveis ao mundo!
Caí, torres de horror, troféus do Averno!

Que estrondo!... Que tropel!... Ao negro abismo
Que desesperação revolve o bojo!...
Para aqui, para ali por entre Fúrias
O sacrílego monstro,
O rábido Satã em vão blasfema.
Lá quer de novo arremeter ao mundo;Mas vê rapidamente aferrolhado
O tartáreo portão com chave eterna.

Enquanto brama, arqueja, enquanto o fero
Morde, remorde as mãos, e a boca horrenda
(As espumas veneno, os olhos brasas)
Mulher divina exulta;
Celestial penhor, que os anjos cantam,
Que as estrelas, que o Sol, que os Céus adoram
Virgem submissa, mereceu na Terra
Circunscrever em Si do Empíreo a glória.

Salve, oh! salve, imortal, serena Diva,
Do nume oculto incombustível sarça,
Rosa de Jericó por Deus disposta!
Flor, ante quem se humilham
Os cedros de que o Líbano alardeia!
Ah, no teu grémio puro amima os votos
Aos mortais de que és Mãe: seu pranto enxugue,
Seus males abonance um teu sorriso!

Bocage tinha certamente pouco de filósofo, mesmo tendo nascido no século do Iluminismo e sendo contemporâneo de Kant. Para afirmar a existência de Deus ele não recorre a subtilezas filosóficas, basta-lhe aquele bom-senso de todos os tempos e que está no famoso verso bíblico que declara que «os céus cantam a glória de Deus». Os céus e toda a criação, como está na Eucaristia, quando se diz que “os Céus e a Terra proclamam a Vossa glória”. É assim no soneto A existência de Deus provada pelas obras da criação:

Os milhões de áureos lustres coruscantes
Que estão da azul abóbada pendendo;
O Sol e a que ilumina o trono horrendo
Dessa que amima os ávidos amantes;

As vastíssimas ondas arrogantes,
Serras de espuma contra os céus erguendo;
A leda fonte humilde o chão lambendo,
Lourejando as searas flutuantes;

O vil mosquito, a próvida formiga,
A rama chocalheira, o tronco mudo:
Tudo que há Deus a confessar me obriga.

E para crer num braço, autor de tudo,
Que recompensa os bons, que os maus castiga,
Não só da fé, mas da razão me ajudo.

Um pouco de atenção a este filão da sua poesia faz logo outra luz sobre um poema recorrente nos manuais escolares, o soneto Ditado entre as agonias do seu trânsito final:

Já Bocage não sou, à cova escura
eu estro vai parar desfeito em vento.
Eu aos céus ultrajei, o meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa, tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!
Eu me arrependo: a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui!... A santidadeManchei!...
Oh, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

O poeta, que cortou com o passado libertino, que “viver não soube” mas que soube morrer, media bem o alcance do seu apelo agónico. Há coisas boas em literatura, mas há também muitas más, e essas são para “rasgar” sem hesitação, como ele suplica.
Como este Bocage está distante das muitas páginas de lama que enchem o Memorial do Convento (do Convento erguido poucas décadas antes do seu nascimento), que a nossa juventude “tem” de ler!

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