01 setembro 2007

A SANTA ÚRSULA


Poema de Luís de Camões



Em rigor pouco, quase nada sabemos de Santa Úrsula. Mas foi uma santa muito popular no mundo anglo-saxónico. Camões, aproveitando a lenda medieval, dedicou-lhe um extenso poema. Embora seja principalmente de «amor divino», o poeta está no seu campo. E há nele momentos vibrantes, por exemplo, nas oitavas 28-35, quando Úrsula pede a Jesus o martírio.
Esta narrativa hagiográfica começa com um proposição, duas invocação e uma dedicatória, ao modo d’Os Lusíadas, o que certamente indica que o poeta não se imaginava a escrever um poemeto vulgar, mas um poema maior. Ele tem sensivelmente a extensão dum dos menores cantos da epopeia.
Na Internet encontra-se muita informação sobre Santa Úrsula, sobretudo em línguas como inglês e francês. Em alemão há o seu sítio oficial, da Diocese de Colónia:
http://www.heilige-ursula.de/


1 De ua fermosa Virgem desposada,
Que de outras onze mil, também fermosas,
Entrou no claro Olimpo acompanhada,
Com coroas de lírios e de rosas;
De Cristo esposo seu tão namorada,
Que dele as quis fazer todas esposas;
Amor, vida e martírio cantar quero,
Fiado no favor que dela espero.

2 Alcança, Úrsula bela (que diante
De tão belo esquadrão foste por guia),
De teu suave Amor, que de ti canto,
O seu amor que no teu peito ardia.
Meu verso para ti mais se levante,
Ó Cristífera, ó heróica companhia;
Tanto se mostre aqui mais soberano,
Quanto o divino Amor excede o humano!

3 E Vós, única Mãe e Virgem pura,
Pois sois das que tal ordem escolheram,
- Que fostes, sois e sereis guarda segura
Da pureza que a Deus ofereceram –
Neste canto me dai melhor ventura
Do que até’gora as Musas vãs me deram:
Vossas servas serão de mim servidas,
Cantadas suas mortes, suas vidas.

4 Sereníssima Infante, produzida
Do grão tronco real, sublime planta;
No título, nas obras e na vida,
Retrato natural de Úrsula Santa,
Desta Virgem também de reis nascida,
Ouvi com ledo rosto o que se canta;
Dai o sentido um pouco a tal sujeito:
Não lhe tire o seu preço o meu defeito.

5 No tempo que Ciríaco se sentava
Na cadeira de Pedro pescador
De que com sã doutrina apacentava
As ovelhas de Cristo, Bom Pastor;
Teve Bretanha um Rei, que professava
A Lei que deu ao mundo o Redentor,
Justo e temente ao Céu, pio e devoto,
Chamado Mauro duns, e doutros Noto.

6 De virtudes um novo exemplo e raro,
Em idade e beleza florecia
Úrsula, por quem Noto era mais claro
Que por todo o poder que possuía;
Com quem o Céu em nada quis ser avaro,
Com quem todas as graças repartia;
Prudente, honesta e douta a maravilha,
De tão ditoso pai ditosa filha.

7 Aquela que por o ar com ligeireza
As setas de mil asas abre e cerra,
E que com velocíssima presteza
Com outros tantos pés corre por terra;
Aquela, que de sua natureza
Não cuida enquanto diz se acerta ou erra.
E dua em outra boca se derrama:
Aquela enfim a quem chamamos Fama,

8 Ia por todo o mundo divulgando
Extremos desta virgem soberana,
Aqueça fermosura celebrando
Com que Amor cego a tanta vista engana:
Mais ia d’alma sua publicando,
Porque era mais divina que humana:
Já dua, e de outra já dizia tanto
Que em uns criava amor, noutros espanto.

9 Ouvidos seus louvores, muitas vezes
Desejou desta virgem fazer nora
Um rei que o ceptro tinha dos Ingleses,
Idólatras então, cegos agora.
Ó povo cego e eleve, as torpes fezes
Aparta do ouro pura e lança fora,
Torna-te ao teu pastor, perdido gado!
Olha que vás sem ele mal guiado.

10 Um filho deste rei (de quem dizia
Que ser de Úrsula sogro desejava)
Movido do rumor que dela ouvia,
Já dentro no seu peito a namorava.
Ali seu amor, dele, lhe oferecia;
Ali por o amor dela suspirava.
Suspira ele por ela; ela suspira
Também por outro amor que nunca vira.

11 Mandou o rei inglês embaixadores
Com pompa régia e lustre sumptuoso
(Do grande reino seus grandes senhores)
A Noto, rei não tanto poderoso.
Pediu-lhe a bela filha (que em amores
Ardia toda do celeste Esposo)
Pêra esposa do filho, que sabia
Que já de amores dela todo ardia.

12 O rei bretão se achava descontente
Com a nova embaixada de Inglaterra:
Receia que se nela não consente,
O gentio lhe mova cruel guerra:
Porque sendo mais rico e mais potente,
Assi no largo mar, como na terra,
Quando desprezes visse de seu rogo,
Podia pôr Bretanha a ferro e fogo.

13 Sobre este não errado pensamento
Do medo de perder seu senhorio,
Novo discurso tinha e novo intento,
Com que se achava mais medroso e frio.
Estranhava o fazer ajuntamento
Da católica filha cum gentio;
Pois nem a lei de Cristo o permitia.
Nem Ursula fiel o admitiria.

14 Estando o pai em tal angústia posto,
Divinamente a filha já inspirada,
Lhe assegurava com sereno rosto
Que consentir podia na embaixada;
Dezendo que se o Inglês levava gosto
Dela com seu herdeiro ser casada,
Primeiro lhe mandasse dez donzelas,
Do reino as mais ilustres, as mais belas.

15 Que mil daria a cada virgem destas,
E que a ela outras mil também daria,
Todas de claro sangue, e em vista honestas.
(Destarte a conta de onze mil fazia)
Que por três anos dilação nas festas,
Além do já pedido, lhe pedia;
E naus e mantimentos, porque todas
Fossem com ela a Roma antes das bodas.

16 Ali sua pureza e virgindade
Queria com solene e sacro voto
Consagrar à divina Potestade,
Que o Céu e a Terra fez de próprio moto.
E que deixasse a vã gentilidade
Seu filho, pera genro ser de Noto,
Pera que neste espaço doutrinado
Fosse na fé de Cristo, e baptizado.

17 Com estas condições Ursula disse
Ao caro pai, que, a ser delas contente,
Podia responder; e despedisse
A proposta daquele rei potente:
Ou porque ouvindo-as ele desistisse,
Podendo-se aceitar dificilmente;
Ou porque, quando as virgens concedesse,
Consigo a seu senhor onze mil desse.

18 Oh, divino saber, quão soberano
Conselho é sempre o teu! quão remontado!
Oh, quanto o mor saber te cede humano,
Por mais que de rezões vá mais ornado!
Já dos ídolos deixa o cego engano
O príncipe, da virgem namorado;
Já terno pede ao pai quanto ela pede;
Já o pai quanto lhe roga lhe concede.

19 Já pera ti, ó virgem bela e branda,
Com ua singular velocidade,
Juntar se via dua e doutra banda
De feminil nobreza tenra idade.
As naus aparelhar o rei já manda;
Já nelas se recolhe a virgindade;
Já dão pera Bretanha ao vento velas.
O coração do noivo vai com elas.

20 Já vem a tomar porto onde esperava
Úrsula alvoroçada em grã maneira;
Que pêra as receber ali se achava,
Como senhora não, mas companheira.
Quão falsa era a Lei delas lhes mostrava,
A de Cristo quão pura e verdadeira.
Já se baptiza ua e outra dama;
Damas Úrsula já do Céu lhes chama.

21 A Fama, que não sabe repousar,
Voou de reino em reino, de ilha em ilha;
A gente que concorre não tem par,
Por ver a nunca vista maravilha.
Outros vêm por servir e acompanhar
A Virgem de rei nora, de rei filha.
Movem-se muitos bispos de Bretanha;
Pântalo em vida e morte os acompanha.

22 Por ti, deixando o reino, coa família
E quatro filhas suas, se embarcou,
Juliana, Vitória, Áurea, Babília;
(Um filho tinha mais que mais levou)
Gerasina, rainha de Sicília,
E com devido amor te acompanhou;
Que é justo que contigo vão rainhas,
Quando tu pera o rei dos reis caminhas.

23 Já se partem as belas peregrinas,
As mãos ao claro empíreo levantadas;
Já rompem, já, por ondas cristalinas
As naus de fermosura carregadas.
Quando, dezei, ó águas neptuninas,
Fostes de tal beleza navegadas?
Nunca, depois que a terra descobristes,
A tal frota por vós caminho abristes.

24 Com vento sempre igual, com mar bonança,
Sem perigos alguns, sem algum pejo,
Ceila foram tomar, porto de França,
Onde pouca demora fazer vejo.
O coração da Virgem não descansa,
Saudosa do fim de seu desejo;
Manda que levem ferro, soltem linho
Que leve por o mar o negro pinho.

25 vento nova posse vai tomando
Das virgens que lhes são encomendadas:
Com tal prosperidade vão voando,
Que já deixam atrás ondas salgadas:
Já nas doces do Reno estão entrando,
Onde têm suas vidas limitadas:
Ua cidade vem à míngua da água,
Que de vê-las morrer não teve mágoa.

26 Ah, Colónia cruel, que não te encobres
A tão fermosos olhos, que seguros
As altas torres viam que descobres,
Lustrosos edifícios, fortes muros!
Permite o largo Céu que fama cobres
De ser tão dura mãe de peitos duros?
Duros peitos, que a tantos, limpos de erro
Viram abrir sem dor com ímpio ferro?

27 Estando neste porto a bela armada
Tomando o necessário mantimento,
Pera poder seguir sua jornada,
E dar terceira vez o treu ao vento;
Sendo parte da noute já passada,
A Virgem lá no seu retraimento,
Quando estava dormindo toda a frota,
A Cristo orou assi, branda e devota:

28 - Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor, que amando vou toda rendida:
Com quem não há na vida pena grave,
Sem quem glória real não há na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pêra que veja, Amor, o que não vejo?

29 Amor, que de amor cheio e de brandura,
De amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e fermosura,
Não pode nunca haver cousa fermosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Ua vida tão fraca e duvidosa,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?

30 Amor, que por amor Te dispuseste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do Céu desceste;
Amor, que por amor à Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida deste;
Amor, que por amor a glória abriste,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?

31 Amor, que mais e mais sempre te aumentas
No coração que lá contigo trazes;
Amor, que de amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor Te satisfazes,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?

32 Amor, que com amor me cativaste;
(Se livre pode ser quem não cativas)
Amor, que em tais prisões m'asseguraste
As esperanças dantes fugitivas:
Amor, que suspirando m'ensinaste
A derramar por Ti lágrimas vivas,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pêra que veja. Amor, o que não vejo?

33 Quando verei um dia em que ofereça
Por Ti ao cruel ferro o peito forte,
E cercada de virgens apareça
Na tua soberana e eterna corte;
Onde lá cada ua Te mereça,
Cá passando comigo a própria morte;
E todas dando o sangue juntas, todas
Celebremos contigo eternas bodas?

34 Faze-me já, Senhor, esta vontade
Que tenho de Te ver, que sempre tive,
Dês que me deu lugar a tenra idade,
E lume de rezão nesta alma vive.
Não queiras, meu Amor, que a saudade
Sem tal bem a mi só da vida prive;
Que se muito se alarga este desterro,
Por ela irei a Ti, não por o ferro.

35 Desata o meu espírito saudoso,
Do nó mortal em que se vai detendo,
Primeiro que três vezes pressuroso
O Sol os doze signos vá correndo.
Espaço é que tomei, meu doce Esposo,
Pera outro esposo meu ir entretendo:
Mas a meu amor crendo, de Ti creio
Que acabes com a vida o meu receio.

36 Inda neste fervente e justo rogo
Úrsula suspirando procedia,
Quando dum resplandor como de fogo
Divina voz ouviu, que assi dezia:
- Ó virgem, que soubeste fazer jogo
Do que no mundo tem maior valia,
Entende que da volta que fizeres,
Aqui quero que seja o que tu queres.

37 Tanto que tal resposta do Céu teve,
Não quis do que esperava perder hora:
Já lhe parece larga a noute breve,
E que já tarda muito a bela Aurora.
Em descobrindo Apolo o carro leve,
Do porto de Colónia saiu fora.
Já Basileia em breve tempo toma:
E a pé dali partiram pera Roma.

38 O Pastor sumo, Ciríaco santo,
As sai a receber, e as acompanha
Com gozo espiritual, com grande espanto
De ver em tal idade fé tamanha,
Dezer se pode mal, mal cuidar quanto
Se goza o real sangue de Bretanha,
Os veneráveis templos visitando
Daqueles que também foi imitando.

39 Na própria noute deste próprio dia
Que Roma ver as virgens mereceu,
A quem de Pedro a Barca então regia
Revelou O que rege a Terra e Céu
Que martírio também receberia
Onde Úrsula coas mais o recebeu:
Deixa contente o grão pontificado,
Desejoso de ser martirizado.

40 Por mais que todo o clero sofre mal
Mover-se por aquelas estrangeiras,
Movido da vontade divinal
O bom Pastor se vai com as cordeiras.
Um arcebispo leva, um cardeal:
Três bispos deixam vagas três cadeiras,
De Luca, Ravicana e de Ravena:
Maurício me ficava já na pena.

41 Depois de n'água entrar, donde saíram,
Com tão fermoso Sol tantas estrelas,
Já as âncoras debaixo acima tiram,
E de cima já abaixo soltam velas.
Estas naus lá adiante outras naus viram,
Que fazendo-se vêm na volta delas;
Conheceram-se logo as duas frotas:
Ambas dum reino são, ambas devotas.

42 Ali, já rei erguido de Inglaterra,
Vinha de Úrsula bela o belo esposo,
Que reinar não queria já na terra,
Do Céu já namorado e saudoso.
Do seu primeiro amor venceu a guerra
A força doutro amor mais poderoso:
Amando já em seu Deus a esposa bela,
Pera o poder achar, buscava a ela.

43 A mãe, já convertida, traz consigo;
O pai, já cristão feito, falecera,
Com que soube evitar o grão castigo
Que, morrendo gentio, não soubera.
Amor celeste, como aqui não digo
O teu sublime obrar? (Ah, quem pudera!)
Por meio dua virgem foste meio
Com que gente copiosa a Cristo veio.

44 Vinha mais nesta nova companhia
Florência, irmã do Rei, da mãe cuidado;
Florência, que em beleza florecia,
Como flor em jardim bem cultivado.
Também a frota bispos dous trazia,
Um Marcelo, Clemente outro chamado:
O primeiro já em Grécia bago teve;
Do segundo o bispado não se escreve.

45 Outra virgem viúva ali mais vinha,
Que desposada sendo em tenra idade,
Antes das bodas enviuvado tinha,
E prometida a Cristo a castidade.
Esta do mesmo rei era sobrinha,
Filha da imperatriz da grã cidade,
Onde por culpa nossa, ou pouca dita,
Seu trono agora tem o fero Cita.

46 Estes, que adverte repetida história
Deixaram só por Deus altos estados,
Com outros, de que é menos a memória,
Foram divinamente amoestados
Que todos, pêra entrar juntos na glória,
Ao coro virginal fossem juntados,
Com quem na terra Mártires seriam,
E no Céu pera sempre reinariam.

47 Seria estranho o gozo que sentiram
Aquelas bem nacidas almas santas,
Quando juntas ali todas se viram
De partes tão remotas, e de tantas.
Sem estorvos, que dantes o impediram,
As duas, mais que todas, belas plantas
Ali abraços se dão sem algum pejo,
Ambas conforme já num só desejo.

48 Ali faria o rei acatamento
A quem deixou da Barca o grão governo;
E ele, conforme a seu merecimento,
Responderia com amor paterno.
Não faltaria em tal recebimento
Prazer exterior, prazer interno;
Inda que nos estados diferentes,
Todos seriam uns em ser contentes.

49 O vento as brancas velas não enchia,
Corria o frio Reno então mais quedo;
Antes pera Colónia não corria,
Por que as virgens não fossem lá tão cedo.
Parece que já claro conhecia
(Oh, coro virginal, sereno e ledo!)
Que lá vos esperava a ímpia morte.
Agora, ó Musa, conta de que sorte.

50 Aquele que na forma de serpente
Deixou aos dous primeiros enganados,
Envejoso de ver que tanta gente
Se convertia à Lei dos baptizados;
No coração entrou manhosamente
De dous gentios príncipes danados,
Da soberba romã cavaleria,
Por encurtar a Fé que se estendia.

51 A Fama os assegura com certeza
Que a virgem de Colónoia já voltava,
Com toda a casta juvenil beleza
Que por amor do Céu peregrinava.
Fizeram avisar com grã presteza
A um parente, que Júlio se chamava,
Soberbo capitão dos Hunos feros;
Que todos pera todas foram Neros.

52 Eis logo o cego príncipe gentio,
Com gente inumerável de seu mando,
A praia a tomar vem do mesmo rio
Por onde as virgens vinham navegando.
Já descobrem aquele, este navio
Os que estão do mais alto atalaiando:
Às armas veloz corre o bruto povo,
Por de novo as tingir no sangue novo.

53 Vindo a frota a surgir junto do muro,
Onde lhe parecia estar segura,
(Ó virgens, que buscais? lugar seguro
Adonde vos espera a sepultura!)
Entra com mão armada o povo duro
Por esta peregrina fermosura:
Já começa a provar os aços fortes;
Eis tudo sangue já, eis tudo mortes.

54 Já nu todas as virgens of’reciam
O delicado colo, o tenro peito:
Era pera caber quantas caíam,
Todo largo lugar, lugar estreito.
Do puro sangue os rios que corriam,
Outro vermelho mar já tinham feito.
Tu só, Córdula, à morte te escondeste;
Mas depois a buscaste e recebeste.

55 Ciríaco o primeiro, bem constante,
A vida ao ferro ofrece sem espanto:
O moço rei inglês caiu diante
Daqueles castos olhos que amou tanto.
Espera, brando esposo, um breve instante;
Espera a tua doce esposa, em tanto
Que outro Amor outro golpe lhe prepara;
E juntos entrareis na pátria cara.

56 Em qual terra, ó cruéis, em qual cidade,
Antre quais gentes mais a furor dadas,
Se não usou de amor e de piadade
Com fermosas donzelas desarmadas?
Como beleza tanta e tal idade
Vos deixou arrancar vossas espadas?
Ah, lobos carniceiros, tigres bravos,
Filhos da crueldade, d'ira escravos!

57 De quantos animais sustenta a terra
Nunca tanta crueza foi usada;
Inda que tenham uns com outros guerra,
Nunca do macho a fêmea é lastimada:
Anda a cerva co cervo por a serra,
A novilha do touro acompanhada,
A leonesa o leão defender preza:
Vós sós quebrais as leis da Natureza?

58 Puderam outros olhos porventura
De lágrimas divinas escusar-se,
Vendo, coberta já de névoa escura,
A luz de tantos belos apagar-se?
Vendo a purpúrea rosa, a cecém pura
Em tão fermosas faces descorar-se?
As tranças d'ouro vendo, espedaçadas,
Por debaixo dos pés andar pisadas?

59 Na força desta fúria acesa e brava
O tirano cruel a vista ergueu
À virgem, que invencível animava
As almas que juntara para o Céu.
Assi já envolta em sangue como andava,
Da sua fermosura se venceu;
E com doces rezões que Amor ensina
A vencê-la de amor se determina.

60 Fingindo se arrepende do passado,
(E de fingi-lo se arrepende asinha)
Sua vida lhe oferece e seu estado,
Sem ver que estado e vida a perder vinha.
O seu amor lhe pede confiado;
O seu amor que dado a seu Deus tinha:
Pede-lhe o seu amor; antes não seu,
Porque já dado o havia a quem lho deu.

61 Usa de mil lisonjas, mil enganos,
Por conseguir o seu desejo bruto:
«A flor logra (dezia) de teus anos,
Colhe dessa beleza o doce fruto:
Não dês matéria nova a novos danos,
Não pagues verde à morte o seu tributo:
Olha que tens em mim (não são cautelas)
Outro reino, outro esposo, outras donzelas.

62 Não faças mentirosa a Natureza
Que dá d'amor em ti grande esperança.
Que se pode alcançar dessa beleza,
Se já piadade dela não s'alcança?
Aos tigres, aos leões deixa a braveza,
E deixa aos meus soldados a vingança.
Se por ver-me cruel queres ser crua,
Já te vingas de mim em cousa tua.

63 Volve esses olhos já com mais brandura;
Esses olhos, d'amor doce morada:
Deles não faça em mim a fermosura,
O que em tantos já fez a minha espada.
Se queres derribar minha ventura,
Que deles estar vejo pendurada,
Acabarei de ver quão pouco tenho,
Pois donde a matar vim a morrer venho.

64 Como do rogo meu não te aproveitas,
Quando o teu risco a me rogar te obriga?
Ou não conheces bem a quem enjeitas,
Ou me enjeitas por mais que seja e diga.
Em que cuidas, Senhora? ou que suspeitas?
Mais próprio era chamar-te dura imiga.
Mas não consente amor nome tão duro
Em parecer tão brando e tão seguro.

65 Os raios desses olhos já serenos
Enxuguem desse rostro as puras rosas;
O triste suspirar já soe menos
Nestas concavidades saudosas.
Não façam grande mal males pequenos;
Que não sofre esperanças vagarosas
Quem anda costumado em seus amores
A medir por seu gosto seus favores.

66 Que gosto podes ter de maltratar-me,
Vendo-me do passado arrependido?
Atenta que mais ganhas em ganhar-me,
Do que neste destroço tens perdido.
Se queres insistir em desprezar,
Ver-me-ás, sobre amoroso, enfurecido.
Não me declaro mais, porque não quero
Que o medo faça o que de amor espero.»

67 — Ah pérfido amador, deixa o teu erro.
Não vês quanto enganado e cego andas?
Aquela a quem não vence o duro ferro,
Como a podem vencer palavras brandas?
Manda a sua alma já deste desterro,
Com essas que a seu doce Esposo mandas.
Não a detenhas mais em teus amores,
Se dobrar-lhe não queres suas dores. —

68 Vendo o cruel, enfim, que o que dezia,
Tomava a bela virgem por afronta,
E que quanto de amor mais se acendia,
Ela dele fazia menos conta;
No côncavo arco que na mão trazia,
Ua seta embebeu de aguda ponta,
E o peito lhe passou de banda a banda.
Assi rendeu o esprito a virgem branda.


69 Vai-te, Esprito gentil, desta baixeza;
As asas abre já, já a luz derrama;
Voa com desusada ligeireza
Onde o teu bem te espera, onde te chama.
Verás baixa do mundo a mor alteza;
Verás que engana mais a quem mais ama;
E lá do teu Amor, cá suspirado,
O fruito colherás tão desejado.

70 Em paz te vai, ó alma pura e bela,
Mais bela inda no sangue que verteste;
Vai-te alegre a gozar, vai já daquela
Fermosa região, alta e celeste.
Coroada de glória imortal, nela
Com Cristo lograrás a quem te deste
Com tantas e tão bem nacidas almas,
(Fermosura do Céu) onze mil palmas.

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