28 maio 2007

AINDA O «MEMORIAL DO CONVENTO»

Eu li pouco da obra de Saramago e pouco sobre ela. Mas pouco é diferente de nada, e além disso não sou propriamente um principiante na leitura de obras de ficção narrativa. Em particular, li o artigo do Prof. Carlos Reis que vem na Biblos Enciclopédica Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa; nas entrelinhas dele, creio que este professor de Coimbra vai deixando transparecer que a sua admiração pelo autor do Memorial do Convento não é muito grande. Bem vistas as coisas, não me parecem de valor garantido as qualidades que lhe atribui.
Mas ao lado de Carlos Reis, há os delirantes. Há até quem aproxime Blimunda de Nossa Senhora e atribua a Saramago a criação duma espécie de nova eucaristia!
Vindo porém a coisas mais comuns, as autoras do manual que uso, aqui já referidas, ao expor as «marcas essenciais» da linguagem literária de Saramago, começam a sua lista por esta: «a ausência de pontuação convencional, sendo a vírgula o sinal de pontuação de maior relevância, marcando as intervenções das personagens, o ritmo e as pausas». A segunda vai pelo mesmo caminho: «o uso subversivo da maiúscula no interior da frase».
Se estas fossem as principais, logicamente a seguinte deveria ser a de que ele não dá erros ortográficos (salvo algumas gralhas[1])… Depois vêm contudo outras já mais criticamente válidas.
Mas o que não se encontra na lista destas «marcas essenciais» é a referência ao vocabulário do tipo de «merda e mijo».
Num país de longa tradição e maioria católica, no ano anterior os alunos do 12.º ano tiveram de comentar esta original opinião de Óscar Lopes: «Memorial do Convento […] traça do século XVIII uma visão extraordinária».
Mas se romance se ocupa só de cerca dum quarto de século, como há-de ele dar a visão do século todo? E depois de D. João V não houve o Marquês de Pombal? Barroco e Neoclassicismo é tudo o mesmo? Distorcendo esta narrativa tanto a verdade histórica, onde pode estar o carácter extraordinário dessa visão?
Eu não sou historiador, mas apelo para um, o autor do artigo sobre D. João V na Enciclopédia Verbo. Há real parecença entre este D. João V da história e o de Saramago? Entre o padre Bartolomeu da história e o do romance, penso que medeia um abismo…
A palavra saramago designa originalmente uma erva daninha[2]. Eu conheci-a muito bem nos campos minhotos, a ela e à soagem, que andavam quase sempre juntas. Mas o dicionário do meu computador só apresenta saramago com maiúscula…

[1] Na edição que uso (21.ª), na página 145, ao fundo, aparece este título em latim «Iuris ecclesiastici libri tre, Colectanea doctorum tam veteram quam recentiorum in ius pontificum universum […]»; mas as palavras tre e veteram estão erradas, por tres e veterum.
[2] Digo daninha, porque foi sempre assim que a vi tratada, por infestar as culturas; se noutros lugares pessoas a usavam para alimento, eu nunca tive essa experiência.

22 maio 2007

«MEMORIAL DO CONVENTO»: BLASFÉMIA E MILAGRE

D. Duarte de Bragança terá sido das pessoas que melhor se pronunciaram sobre Saramago quando o escritor recebeu o Prémio Nobel. Disse então:
«É um autor de leitura difícil e pesada, que insulta abertamente os sentimentos cristãos. Duvido que os membros do júri tenham lido os seus escritos. É como se tivéssemos ganho o campeonato de futebol: é bom, mas não tem muito conteúdo».
Vindo ao meu título, blasfémia e milagre caminham de mãos dadas ao longo das páginas do Memorial do Convento. A blasfémia, já a conhecíamos de muitos autores, de Eça a Guerra Junqueiro, de Pessoa a Torga e certamente a outras sumidades das Letras que me honro de conhecer mal. Mas aqui ela requinta: é gratuita e constante. Além disso, vai directa ao coração do Cristianismo: à Trindade Santíssima, aos Sacramentos, aos Santos, aos Sacerdotes e aos Monges, à Sagrada Escritura.
Uma das mais primárias e ridículas é a que se contém nas frases seguintes:
«Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, é o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mãe esquerda».
Este padre Bartolomeu de Saramago usa a lógica da batata: não se fala duma coisa, logo ela não existe. Antes de Colombo, não existia a América.
Por sinal a Sagrada Escritura até fala da esquerda de Deus:
Quando o Filho do homem vier em sua glória com todos os seus anjos, então se assentará no seu trono glorioso. (…) Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos, à esquerda. E o rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Tomai posse do Reino preparado para vós desde a criação do mundo. Porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, enfermo e me visitastes, estava na cadeia e viestes ver-me’. E os justos perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? (…)
Depois dirá aos
da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos!' (cap. 25 do Evangelho de S. Mateus).
O «povinho» de Saramago é muito diferente do dos dirigentes políticos de esquerda. Veja-se como ele acompanha um auto de fé: «Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham as mulheres debruçadas dos peitoris», cospe o mesmo povo para os condenados, atira-lhes «cascas de melancia e imundícies». Este não é o povo sábio, aquele que «mais ordena», é mais ao modo de Salazar.
Não admira por isso que seja crédulo. E nem o é tanto por força da pregação oportunista dos clérigos, coisa que Saramago descobre em muitas ocasiões. Não, ele cria os seus milagres, que os clérigos secundam, ampliam e também criam. Vive-se num mundo de maravilha – ao serviço do ridículo e do sarcasmo. Até Blimunda é uma personagem milagrosa; até a passarola voa por um milagre!
Um mundo de confusão, de crença tonta e … de Santo Ofício. Que mundo povoa a cabeça de Saramago!

16 maio 2007

O «MEMORIAL DO CONVENTO» OU O REI QUE VAI NU

Há talvez uns sete anos, uma colega insistiu comigo para que lesse Saramago, que ia gostar. E dizia que já tinha um dia convencido certa professora, que depois se entusiasmara com a obra do escritor. Mas eu mantive-me na minha: não achava que ele tivesse nada de interessante para me dizer. Achava-o rude e preconceituoso e tinha muito mais com que me ocupar.
Este ano porém não pude evitar o Memorial do Convento, pois tinha de acompanhar os meus alunos na sua leitura.
Dizer que foi para mim uma decepção não é muito correcto, pois as minhas expectativas não eram altas; mas dizer que não gostei é a inteira verdade.
Que rudeza, que primarismo! E mentiras como não esperava!
Penso que a intenção que comanda o autor é ridicularizar a Igreja, aquela Igreja em que me integro desde que me conheço e a que tenho dedicado muitos dos melhores momentos da minha atenção e da minha vida.
Saramago sabia com certeza que o projecto inicial do Convento de Mafra era o dum edifício muito modesto, para 13 frades, coisa à altura duma família nobre mais abastada. Mas isso não o diz ele, preocupado em convencer o leitor de que os frades arrábidos eram uns grosseiros oportunistas e o rei, um tonto. Mas uma coisa é a verdade e outra o seu falseamento.
Neste memorial tão atento a miudezas, como os dos nomes dos trabalhadores ou duma pedra muito grande que é transportada para as obras, não consta afinal o resultado: uma descrição da grandiosidade do convento construído, da sua imponente fachada, da sua magnífica basílica ou da sua biblioteca, por exemplo.
Um pormenor com que muito embirrei, entre outros, foi aquele de insinuar que as pessoas acreditavam que as imagens dos santos tinham ficado a conversar entre si na noite que precedeu a sua colocação nos respectivos nichos ou lugares. O autor, que na cerimónia de recepção do seu Prémio Nobel afirma que descobriu num popular analfabeto o homem mais sábio que conheceu, faz muito baixo conceito dos trabalhadores e populares de Mafra. Eles eram sem dúvida bem mais inteligentes do que o romancista insinua.
Eu conheço relativamente pouco sobre o P.e Bartolomeu de Gusmão. É certo que ele podia ter sido um cientista de sucesso, pois começou bem e tinha um projecto ousado: queria mesmo voar e talvez essa meta lhe não fosse inacessível. Mas não concretizou o seu sonho, e o Santo Ofício pouco ou nada há-de ter contribuído para isso, ao contrário do que na sua cegueira Saramago quer fazer crer. Mas chegar a dizer que ele descria de todo o Catolicismo, que recuara a judeu… parece-me demais.
As autoras do manual de que me sirvo são cá duma inteligência bem rara! Dizem elas do P.e Bartolomeu que este «cientista ignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os princípios dogmáticos da Igreja». E falam das «suas inabaláveis certezas científicas», dizem que a Inquisição o «acusa de bruxaria»; que «a sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que não se inibe de integrar no seu projecto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda, que farão a passarola voar».
Que confusão aqui vai! De quem estarão elas a falar, do P.e Gusmão da História ou do P.e Gusmão de Saramago? Chama-se «cientista» de «inabaláveis certezas» quem quer voar na base de vontades reunidas dentro de esferas? Isso não sabe mesmo a pretensão de bruxaria?
Quem é que associou a si «um casal não abençoado pela Igreja», foi o P.e Bartolomeu da História ou o de Saramago? As capacidades de Blimunda são «heréticas»? Como assim? Não são antes como a lâmpada de Aladino, só magicas, isto é, nada?
Que primarismo por aqui anda, que primarismo enche as páginas deste memorial!
A Inquisição foi extinta há cerca de 180 anos. Porque será que ela apoquenta tanto Saramago, que tão pouco se doeu com o Gulag soviético, tão próximo dele e de nós, com os mortos do regime cubano, de tantos outros regimes que ele bem conheceu?
Como o rei vai nu!

Nota
- Na sua sanha de denegrir tudo o que respeita ao Convento, Saramago cuida de lembrar que na sua construção houve muitos feridos e mortos, sem dizer quantos. É provável que a média não fosse muito diferente da de outras obras europeias de grande envergadura. Aliás a construção civil ainda hoje é uma actividade com mortes frequentes. Pelos vistos, uma obra em que as mortes tiveram dimensão de hecatombe foi o Canal do Suez: 120.000!