22 maio 2007

«MEMORIAL DO CONVENTO»: BLASFÉMIA E MILAGRE

D. Duarte de Bragança terá sido das pessoas que melhor se pronunciaram sobre Saramago quando o escritor recebeu o Prémio Nobel. Disse então:
«É um autor de leitura difícil e pesada, que insulta abertamente os sentimentos cristãos. Duvido que os membros do júri tenham lido os seus escritos. É como se tivéssemos ganho o campeonato de futebol: é bom, mas não tem muito conteúdo».
Vindo ao meu título, blasfémia e milagre caminham de mãos dadas ao longo das páginas do Memorial do Convento. A blasfémia, já a conhecíamos de muitos autores, de Eça a Guerra Junqueiro, de Pessoa a Torga e certamente a outras sumidades das Letras que me honro de conhecer mal. Mas aqui ela requinta: é gratuita e constante. Além disso, vai directa ao coração do Cristianismo: à Trindade Santíssima, aos Sacramentos, aos Santos, aos Sacerdotes e aos Monges, à Sagrada Escritura.
Uma das mais primárias e ridículas é a que se contém nas frases seguintes:
«Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, é o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mãe esquerda».
Este padre Bartolomeu de Saramago usa a lógica da batata: não se fala duma coisa, logo ela não existe. Antes de Colombo, não existia a América.
Por sinal a Sagrada Escritura até fala da esquerda de Deus:
Quando o Filho do homem vier em sua glória com todos os seus anjos, então se assentará no seu trono glorioso. (…) Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos, à esquerda. E o rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Tomai posse do Reino preparado para vós desde a criação do mundo. Porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, enfermo e me visitastes, estava na cadeia e viestes ver-me’. E os justos perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? (…)
Depois dirá aos
da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos!' (cap. 25 do Evangelho de S. Mateus).
O «povinho» de Saramago é muito diferente do dos dirigentes políticos de esquerda. Veja-se como ele acompanha um auto de fé: «Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham as mulheres debruçadas dos peitoris», cospe o mesmo povo para os condenados, atira-lhes «cascas de melancia e imundícies». Este não é o povo sábio, aquele que «mais ordena», é mais ao modo de Salazar.
Não admira por isso que seja crédulo. E nem o é tanto por força da pregação oportunista dos clérigos, coisa que Saramago descobre em muitas ocasiões. Não, ele cria os seus milagres, que os clérigos secundam, ampliam e também criam. Vive-se num mundo de maravilha – ao serviço do ridículo e do sarcasmo. Até Blimunda é uma personagem milagrosa; até a passarola voa por um milagre!
Um mundo de confusão, de crença tonta e … de Santo Ofício. Que mundo povoa a cabeça de Saramago!

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