16 maio 2007

O «MEMORIAL DO CONVENTO» OU O REI QUE VAI NU

Há talvez uns sete anos, uma colega insistiu comigo para que lesse Saramago, que ia gostar. E dizia que já tinha um dia convencido certa professora, que depois se entusiasmara com a obra do escritor. Mas eu mantive-me na minha: não achava que ele tivesse nada de interessante para me dizer. Achava-o rude e preconceituoso e tinha muito mais com que me ocupar.
Este ano porém não pude evitar o Memorial do Convento, pois tinha de acompanhar os meus alunos na sua leitura.
Dizer que foi para mim uma decepção não é muito correcto, pois as minhas expectativas não eram altas; mas dizer que não gostei é a inteira verdade.
Que rudeza, que primarismo! E mentiras como não esperava!
Penso que a intenção que comanda o autor é ridicularizar a Igreja, aquela Igreja em que me integro desde que me conheço e a que tenho dedicado muitos dos melhores momentos da minha atenção e da minha vida.
Saramago sabia com certeza que o projecto inicial do Convento de Mafra era o dum edifício muito modesto, para 13 frades, coisa à altura duma família nobre mais abastada. Mas isso não o diz ele, preocupado em convencer o leitor de que os frades arrábidos eram uns grosseiros oportunistas e o rei, um tonto. Mas uma coisa é a verdade e outra o seu falseamento.
Neste memorial tão atento a miudezas, como os dos nomes dos trabalhadores ou duma pedra muito grande que é transportada para as obras, não consta afinal o resultado: uma descrição da grandiosidade do convento construído, da sua imponente fachada, da sua magnífica basílica ou da sua biblioteca, por exemplo.
Um pormenor com que muito embirrei, entre outros, foi aquele de insinuar que as pessoas acreditavam que as imagens dos santos tinham ficado a conversar entre si na noite que precedeu a sua colocação nos respectivos nichos ou lugares. O autor, que na cerimónia de recepção do seu Prémio Nobel afirma que descobriu num popular analfabeto o homem mais sábio que conheceu, faz muito baixo conceito dos trabalhadores e populares de Mafra. Eles eram sem dúvida bem mais inteligentes do que o romancista insinua.
Eu conheço relativamente pouco sobre o P.e Bartolomeu de Gusmão. É certo que ele podia ter sido um cientista de sucesso, pois começou bem e tinha um projecto ousado: queria mesmo voar e talvez essa meta lhe não fosse inacessível. Mas não concretizou o seu sonho, e o Santo Ofício pouco ou nada há-de ter contribuído para isso, ao contrário do que na sua cegueira Saramago quer fazer crer. Mas chegar a dizer que ele descria de todo o Catolicismo, que recuara a judeu… parece-me demais.
As autoras do manual de que me sirvo são cá duma inteligência bem rara! Dizem elas do P.e Bartolomeu que este «cientista ignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os princípios dogmáticos da Igreja». E falam das «suas inabaláveis certezas científicas», dizem que a Inquisição o «acusa de bruxaria»; que «a sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que não se inibe de integrar no seu projecto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda, que farão a passarola voar».
Que confusão aqui vai! De quem estarão elas a falar, do P.e Gusmão da História ou do P.e Gusmão de Saramago? Chama-se «cientista» de «inabaláveis certezas» quem quer voar na base de vontades reunidas dentro de esferas? Isso não sabe mesmo a pretensão de bruxaria?
Quem é que associou a si «um casal não abençoado pela Igreja», foi o P.e Bartolomeu da História ou o de Saramago? As capacidades de Blimunda são «heréticas»? Como assim? Não são antes como a lâmpada de Aladino, só magicas, isto é, nada?
Que primarismo por aqui anda, que primarismo enche as páginas deste memorial!
A Inquisição foi extinta há cerca de 180 anos. Porque será que ela apoquenta tanto Saramago, que tão pouco se doeu com o Gulag soviético, tão próximo dele e de nós, com os mortos do regime cubano, de tantos outros regimes que ele bem conheceu?
Como o rei vai nu!

Nota
- Na sua sanha de denegrir tudo o que respeita ao Convento, Saramago cuida de lembrar que na sua construção houve muitos feridos e mortos, sem dizer quantos. É provável que a média não fosse muito diferente da de outras obras europeias de grande envergadura. Aliás a construção civil ainda hoje é uma actividade com mortes frequentes. Pelos vistos, uma obra em que as mortes tiveram dimensão de hecatombe foi o Canal do Suez: 120.000!

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