28 abril 2007

OS PALÁCIOS D’«OS LUSÍADAS» (fim)

Os «régios paços» do Samorim

Agora temos um palácio real, não de fantasia. Camões dá-se conta da sua superioridade relativamente ao que havia na Europa:

Já chegam perto, e não [com] passos lentos,
Dos jardins odoríferos fermosos,
Que em si escondem os régios apousentos,
Altos de torres não, mas sumptuosos;
Edificam-se os nobres seus assentos
Por entre os arvoredos deleitosos:
Assi vivem os Reis daquela gente,
No campo e na cidade juntamente.

O palácio esconde-se numa enorme cerca, ao modo oriental. Por isso, como se diz nos dois versos finais, o Samorim atinge um anseio bem nosso contemporâneo, o de viver «no campo e na cidade juntamente», o de ter a liberdade, a comunhão com a natureza, a pureza de ares do campo e as comodidades urbanas.
Atente-se na informação sobre a inexistência das torres, ao contrário do que se passava nas cidades submarinas e na Europa.
Ao modo do que sucedera com as portas das cidades do fundo do oceano, aqui as portas da cerca ostentam painéis historiados que contam a história da Índia na sua ligação ao mundo ocidental pelas intervenções sucessivas de Baco, Semíramis e Alexandre Magno:

Pelos portais da cerca a sutileza
Se enxerga da Dedálea facultade,
Em figuras mostrando, por nobreza,
Da Índia a mais remota antiguidade.
Afiguradas vão com tal viveza
As histórias daquela antiga idade,
Que quem delas tiver notícia inteira,
Pela sombra conhece a verdadeira.

Estava um grande exército, que pisa
A terra Oriental que o Idaspe lava;
Rege-o um capitão de fronte lisa,
Que com frondentes tirsos pelejava
(Por ele edificada estava Nisa
Nas ribeiras do rio que manava),
Tão próprio que, se ali estiver Semele,
Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

Mais avante, bebendo, seca o rio
Mui grande multidão da Assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
De ua tão bela como incontinente.
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!

Daqui mais apartadas, tremulavam
As bandeiras de Grécia gloriosas
(Terceira Monarquia), e sojugavam
Até as águas Gangéticas undosas.
Dum capitão mancebo se guiavam,
De palmas rodeado valerosas,
Que já não de Filipo, mas, sem falta,
De progénie de Júpiter se exalta.

«Inclinai por um pouco a majestade»

Se para o rei de Melinde há «nobres paços», para o Samorim «régios apousentos», que haverá para D. Sebastião a quem o poeta trata tão majestaticamente? Preste-se atenção a estes versos:

Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: ...

Como Júpiter, como Neptuno ou Baco, o rei ocupa um lugar superior; é de lá, de um trono, que ele há-de estar atento à oferta do poeta. Mas estará ele só? Não estará antes num palácio com a sua corte? Ou estará numa espécie de anfiteatro, tendo a seu lado as Ninfas do Tejo, a quem antes o poeta se dirigira, e o Povo português o rei que governa e o poema exalta?

O Camões «humilde, baixo e rudo» é um sonhador. Com muita luz, com cristais e diamantes, ouro, pedrarias, riqueza sem limites, fabrica «na fantasia / fantásticas pinturas de alegria» (Canção X).
Estas antíteses de realidade e sonho, com os seus entusiasmos e as suas prostrações, não o afastam do maneirismo, confirmam-no como maneirista...

Sobre as imagens: a de cima representa Goa, não sei se no séc. XVI se XVII, com com as suas casas apalaçadas e remates pontiagudos, à europeia. Camões, pelo contrário, põe em evidência a diferença do palácio do Samorim: «altos de torres não, mas sumptuosos; (...) / assi vivem os Reis daquela gente, / No campo e na cidade juntamente.
A segunda imagem é o conhecido retrato de D. Sebastião por Cristóvão de Morais, de 1571.

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