Jesus falou frequentemente à multidão. O trecho seguinte reflecte esse tipo de comunicação, pois conserva marcas oratórias bastante nítidas. É a versão das Bem-aventuranças que vem no Evangelho de S. Lucas. Vejamo-la:
Felizes vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus!
Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados!
Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir!
Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem!
Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu; era precisamente assim que os pais deles tratavam os profetas!
Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação!
Ai de vós, os que agora estais fartos, porque haveis de ter fome!
Ai de vós, os que agora rides, porque vos gemereis e chorareis!
Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas!
Lc 6, 20-26
A primeira observação é esta: ao contrário de S. Mateus, cuja proclamação das Bem-aventuranças é um bloco homogéneo de oito declarações pela positiva, «eufóricas», aqui temos dois blocos: um de quatro bem-aventuranças, outro de outras tantas declarações de infelicidade, imprecações – mal-aventuranças, diríamos.
E trata-se de blocos antitéticos: aos pobres opõem-se os ricos; aos que têm fome contrapõem-se os que «estais fartos», etc. Aliás lá está a habitual conjunção adversativa «mas» a fazer a separação das águas...
Além da antítese, o texto dá grande relevo à anáfora e ao paralelismo. A reunião dos três processos – antítese, anáfora e paralelismo – alerta-nos de imediato para o efeito oratório da proclamação. Indubitavelmente, com esta formulação ela ganha solenidade.
Por outro lado, os mesmos processos lembram-nos textos antigos, como salmos e literatura sapiencial da tradição vétero-testamentária.
Repare-se também no uso da segunda pessoa verbal, da interjeição...
Mas há mais dois processos a relevar. Comecemos pelo paradoxo. Realmente tem muito de paradoxal declarar felizes os pobres ou os que têm fome. Quem de nós desejaria essa felicidade?
O paradoxo é aliás bastante comum em S. Lucas e indica uma orientação importante do terceiro Evangelho: o radicalismo da força transformadora da sua mensagem, que às vezes tem ares modernos de esquerda.
Trata-se de uma orientação muito fácil de ilustrar: no presépio, Jesus não tem a visita de sábios nem de piedosos, mas de pastores, considerados marginais, por não poderem frequentar a sinagoga. Foram esses que Jesus Menino quis como primeira companhia não familiar. Ao filho pródigo que, no seu regresso, se contentava com ser aceite como criado pelo pai, este dá-lhe uma festa (que escandaliza o irmão mais velho). Na Cruz, a um dos ladrões bastam algumas palavras de atenção para com Jesus para que ele lhe garanta que «hoje mesmo» estará consigo no Paraíso – sem passar longo período no Purgatório… –, etc.
Há muita coisa desconcertante, inesperada neste evangelho.
Atentemos ainda num outro processo, especificamente bíblico. Trata-se do que cremos chamar-se a «viragem ao passivo».
«Felizes vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados!» Saciados por quem?
O judeu piedoso, por respeito, evitava pronunciar o nome de Deus: Ele só deveria ocorrer em contexto de muita veneração. E encontravam-se estratagemas para conseguir este objectivo. Certamente um dos mais conhecidos será o que aqui se verifica e que consiste em transpor o verbo para a passiva, sem mencionar o agente, que era identificável pelo contexto. A parte final da frase podíamos traduzi-la assim, na nossa linguagem menos respeitadora do segundo mandamento: «porque Deus vos consolará».
Felizes vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus!
Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados!
Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir!
Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem!
Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu; era precisamente assim que os pais deles tratavam os profetas!
Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação!
Ai de vós, os que agora estais fartos, porque haveis de ter fome!
Ai de vós, os que agora rides, porque vos gemereis e chorareis!
Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas!
Lc 6, 20-26
A primeira observação é esta: ao contrário de S. Mateus, cuja proclamação das Bem-aventuranças é um bloco homogéneo de oito declarações pela positiva, «eufóricas», aqui temos dois blocos: um de quatro bem-aventuranças, outro de outras tantas declarações de infelicidade, imprecações – mal-aventuranças, diríamos.
E trata-se de blocos antitéticos: aos pobres opõem-se os ricos; aos que têm fome contrapõem-se os que «estais fartos», etc. Aliás lá está a habitual conjunção adversativa «mas» a fazer a separação das águas...
Além da antítese, o texto dá grande relevo à anáfora e ao paralelismo. A reunião dos três processos – antítese, anáfora e paralelismo – alerta-nos de imediato para o efeito oratório da proclamação. Indubitavelmente, com esta formulação ela ganha solenidade.
Por outro lado, os mesmos processos lembram-nos textos antigos, como salmos e literatura sapiencial da tradição vétero-testamentária.
Repare-se também no uso da segunda pessoa verbal, da interjeição...
Mas há mais dois processos a relevar. Comecemos pelo paradoxo. Realmente tem muito de paradoxal declarar felizes os pobres ou os que têm fome. Quem de nós desejaria essa felicidade?
O paradoxo é aliás bastante comum em S. Lucas e indica uma orientação importante do terceiro Evangelho: o radicalismo da força transformadora da sua mensagem, que às vezes tem ares modernos de esquerda.
Trata-se de uma orientação muito fácil de ilustrar: no presépio, Jesus não tem a visita de sábios nem de piedosos, mas de pastores, considerados marginais, por não poderem frequentar a sinagoga. Foram esses que Jesus Menino quis como primeira companhia não familiar. Ao filho pródigo que, no seu regresso, se contentava com ser aceite como criado pelo pai, este dá-lhe uma festa (que escandaliza o irmão mais velho). Na Cruz, a um dos ladrões bastam algumas palavras de atenção para com Jesus para que ele lhe garanta que «hoje mesmo» estará consigo no Paraíso – sem passar longo período no Purgatório… –, etc.
Há muita coisa desconcertante, inesperada neste evangelho.
Atentemos ainda num outro processo, especificamente bíblico. Trata-se do que cremos chamar-se a «viragem ao passivo».
«Felizes vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados!» Saciados por quem?
O judeu piedoso, por respeito, evitava pronunciar o nome de Deus: Ele só deveria ocorrer em contexto de muita veneração. E encontravam-se estratagemas para conseguir este objectivo. Certamente um dos mais conhecidos será o que aqui se verifica e que consiste em transpor o verbo para a passiva, sem mencionar o agente, que era identificável pelo contexto. A parte final da frase podíamos traduzi-la assim, na nossa linguagem menos respeitadora do segundo mandamento: «porque Deus vos consolará».
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