26 abril 2007

OS PALÁCIOS D’«OS LUSÍADAS» (3)

Os «cristalinos paços singulares»

Dos paços de Neptuno vamos de imediato para «cristalinos paços singulares» que Vénus preparou na sua «alegre e namorada» (c. X, est. 143) «ínsula divina» (c. IX, est. 21) – que nunca é mencionada como Ilha dos Amores; Tétis, «a quem se humilha / todo o coro das Ninfas e obedece» (c. IX, est. 85) é naturalmente deusa ligada aos mares – e em concreto ao Atlântico, onde certamente possui o «Atlântico tesouro» donde há-de vir a baixela para o festim que vai dar.
Quis a Citereia que:

Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Fermosos leitos, e elas mais fermosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
D' amor feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.

É nesses «paços radiantes / E de metais ornados reluzentes» que vai ter lugar o finíssimo festim de Tétis, com óptimas baixelas, fantásticas iguarias e vinhos, conversas argutas, acompanhamento musical:

Quando as fermosas Ninfas, cos amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d' altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,
Se assentam dous e dous, amante e dama;
Noutras, à cabeceira, d' ouro finas,
Está co a bela Deusa o claro Gama.
De iguarias suaves e divinas,
A quem não chega a Egípcia antiga fama,
Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos lá do Atlântico tesouro.

Os vinhos odoríferos, que acima
Estão não só do Itálico Falerno
Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima
Com todo o ajuntamento sempiterno,
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas escumas erguem, que no interno
Coração movem súbita alegria,
Saltando co a mistura d' água fria.

Mil práticas alegres se tocavam;
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cua voz dua angélica Sirena.

Compensa ir daqui dar uma olhadela à Máquina do Mundo, que continua este espaço «divino» de maravilha, pois parece que os Deuses marinhos, que às portas da sua cidade já tinham representações que lembravam altos temas do saber humano e divino, são mais dados a coisas de cultura que os olímpicos. Vejam-se as estrofes iniciais, onde aparecem esmeraldas e rubis e um globo de luz e transparência representa o Universo:

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêm no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
Nunca s' ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

A Máquina do Mundo é o espectáculo único, divino, presenciado por "olhos corporais".
Nas palavras de A. J. Saraiva, "é um dos supremos sucessos de Camões", "as esferas são transparentes, luminosas, vêem-se todas ao mesmo tempo com igual nitidez; movem-se, e o movimento é perceptível, embora a superfície visível seja sempre igual. Conseguir traduzir isto por meio da "pintura que fala" é atingir um dos cumes da literatura universal."
Esta «pintura que fala» (c. VIII, est. 41) ou descrição, opõe-se à «muda poesia» ou pintura propriamente dita, a que o poeta se refere quando escreve no canto VII est. 76:

...................................mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens que, em retrato breve,
A muda poesia ali descreve.

Sobre a imgem: é de Francisco da Holanda, contemporâneo de Luís de Camões. Esta imagem «futurista» também representa a máquina do mundo.

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