11 novembro 2006

A ÉTICA ABERRANTE DOS HETERÓNIMOS

Actualmente ando a leccionar a poesia de Fernando Pessoa. Desde há alguns anos, quando isso acontece, costumo chamar a atenção para alguns aspectos aberrantes das posições éticas dos heterónimos. Eu penso que isto deve surpreender, não tanto os alunos, mas alguns professores que lhes acompanham o estudo, pois, como é sabido, vigora uma tal devoção pelos literatos que parece escandaloso assinalar-lhes defeitos.
Mas este ano fui um pouco mais além: fui à Wikipédia e incluí no artigo do poeta uma secção com parte daquilo que pretendia transmitir aos meus alunos. Pela experiência que tenho daquele meio, esperava uma reacção de recusa. Com alguma surpresa, o que se passou ficou aquém das expectativas mais pessimistas. Alguém introduziu umas alterações ao texto e desviou a orientação das conclusões, mas o principal ficou lá.
O que lá tinha colocado era sensivelmente isto:

Nas Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, escreve Fernando Pessoa que «Álvaro de Cam­pos não tem sombra de ética; é amoral, se não positiva­mente imoral (…) A ideia da perda da inocência duma criança de oito anos (Ode II, ad finem) [Ode Triunfal] é-lhe positivamente agradável, pois satisfaz duas sensações muito fortes – a crueldade e a luxúria».
Esta postura aberrante da Campos, que percorre os seus poemas sensacionistas-futuristas, é paralela a outras atitudes de semelhante teor presentes nos poemas de Alberto Caeiro e Ricardo Reis.
Vejam-se estes versos do «mestre» Caeiro, no poema Ontem o pregador de verdades dele:

Haver injustiça é como haver morte.
Eu nunca daria um passo para alterar
Aquilo a que chamam a injustiça do mundo.

Ricardo Reis por seu lado revela-se ainda mais selvático. Na ode Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia, dois jogadores de xadrez prosseguem a sua partida, mesmo sabendo que a destruição e a morte campeiam na sua cidade que o inimigo invadiu. E sentencia este heterónimo epicurista:

Quando o rei de marfim está em perigo
Que importa a carne e o osso
Das irmãs e das mães e das crianças?
Quando a torre não cobre
A retirada da rainha branca,
O sangue pouco importa.

Isto é fratricida; nenhuma estética pode sobrepor-se a uma solidariedade elementar.

Ao colocar o texto sobre Os Maias, houve um problema de que resultou ser apagada esta mensagem. Daí ela aparacer agora com a data errada.

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