28 novembro 2006

RASGA MEUS VERSOS!

Hoje a literatura é para muitos, parece, uma espécie de substituto da religião. Os escritores tornaram-se como que os santos desta nova idolatria; para a sua canonização basta conseguirem algum sucesso. Não importa a que preço moral, porque as pessoas já se habituaram a prescindir disso – que é o fundamental, até para uma arte digna desse nome.
A minha estima por Bocage nunca foi muito grande, mas, naquele soneto que ele só ditou por já o não poder escrever e que começa «Já Bocage não sou…», faz um apelo à juventude que muitos leitores e escritores deviam ouvir hoje com atenção: «Rasga meus versos, crê a eternidade!»
A gente imagina que ele estivesse a pensar nos seus escritos mais obscenos, mas há por aí muita página e muito espectáculo de gosto tão depravado que é indigno de vir ao público. Para tudo isso, vale o apelo premente: «rasga», não leias! E, se ninguém lhe der atenção, a moda passa!
Veja-se o soneto:

Já Bocage não sou, à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento.
Eu aos céus ultrajei, o meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa, tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo: língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui!... A santidade
Manchei!... Oh, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

1 comentário:

Anónimo disse...

sim. os meus poetas são os meus santos. e a minha deusa sou eu nesta vida na natureza em tudo.