01 setembro 2007

A SANTA ÚRSULA


Poema de Luís de Camões



Em rigor pouco, quase nada sabemos de Santa Úrsula. Mas foi uma santa muito popular no mundo anglo-saxónico. Camões, aproveitando a lenda medieval, dedicou-lhe um extenso poema. Embora seja principalmente de «amor divino», o poeta está no seu campo. E há nele momentos vibrantes, por exemplo, nas oitavas 28-35, quando Úrsula pede a Jesus o martírio.
Esta narrativa hagiográfica começa com um proposição, duas invocação e uma dedicatória, ao modo d’Os Lusíadas, o que certamente indica que o poeta não se imaginava a escrever um poemeto vulgar, mas um poema maior. Ele tem sensivelmente a extensão dum dos menores cantos da epopeia.
Na Internet encontra-se muita informação sobre Santa Úrsula, sobretudo em línguas como inglês e francês. Em alemão há o seu sítio oficial, da Diocese de Colónia:
http://www.heilige-ursula.de/


1 De ua fermosa Virgem desposada,
Que de outras onze mil, também fermosas,
Entrou no claro Olimpo acompanhada,
Com coroas de lírios e de rosas;
De Cristo esposo seu tão namorada,
Que dele as quis fazer todas esposas;
Amor, vida e martírio cantar quero,
Fiado no favor que dela espero.

2 Alcança, Úrsula bela (que diante
De tão belo esquadrão foste por guia),
De teu suave Amor, que de ti canto,
O seu amor que no teu peito ardia.
Meu verso para ti mais se levante,
Ó Cristífera, ó heróica companhia;
Tanto se mostre aqui mais soberano,
Quanto o divino Amor excede o humano!

3 E Vós, única Mãe e Virgem pura,
Pois sois das que tal ordem escolheram,
- Que fostes, sois e sereis guarda segura
Da pureza que a Deus ofereceram –
Neste canto me dai melhor ventura
Do que até’gora as Musas vãs me deram:
Vossas servas serão de mim servidas,
Cantadas suas mortes, suas vidas.

4 Sereníssima Infante, produzida
Do grão tronco real, sublime planta;
No título, nas obras e na vida,
Retrato natural de Úrsula Santa,
Desta Virgem também de reis nascida,
Ouvi com ledo rosto o que se canta;
Dai o sentido um pouco a tal sujeito:
Não lhe tire o seu preço o meu defeito.

5 No tempo que Ciríaco se sentava
Na cadeira de Pedro pescador
De que com sã doutrina apacentava
As ovelhas de Cristo, Bom Pastor;
Teve Bretanha um Rei, que professava
A Lei que deu ao mundo o Redentor,
Justo e temente ao Céu, pio e devoto,
Chamado Mauro duns, e doutros Noto.

6 De virtudes um novo exemplo e raro,
Em idade e beleza florecia
Úrsula, por quem Noto era mais claro
Que por todo o poder que possuía;
Com quem o Céu em nada quis ser avaro,
Com quem todas as graças repartia;
Prudente, honesta e douta a maravilha,
De tão ditoso pai ditosa filha.

7 Aquela que por o ar com ligeireza
As setas de mil asas abre e cerra,
E que com velocíssima presteza
Com outros tantos pés corre por terra;
Aquela, que de sua natureza
Não cuida enquanto diz se acerta ou erra.
E dua em outra boca se derrama:
Aquela enfim a quem chamamos Fama,

8 Ia por todo o mundo divulgando
Extremos desta virgem soberana,
Aqueça fermosura celebrando
Com que Amor cego a tanta vista engana:
Mais ia d’alma sua publicando,
Porque era mais divina que humana:
Já dua, e de outra já dizia tanto
Que em uns criava amor, noutros espanto.

9 Ouvidos seus louvores, muitas vezes
Desejou desta virgem fazer nora
Um rei que o ceptro tinha dos Ingleses,
Idólatras então, cegos agora.
Ó povo cego e eleve, as torpes fezes
Aparta do ouro pura e lança fora,
Torna-te ao teu pastor, perdido gado!
Olha que vás sem ele mal guiado.

10 Um filho deste rei (de quem dizia
Que ser de Úrsula sogro desejava)
Movido do rumor que dela ouvia,
Já dentro no seu peito a namorava.
Ali seu amor, dele, lhe oferecia;
Ali por o amor dela suspirava.
Suspira ele por ela; ela suspira
Também por outro amor que nunca vira.

11 Mandou o rei inglês embaixadores
Com pompa régia e lustre sumptuoso
(Do grande reino seus grandes senhores)
A Noto, rei não tanto poderoso.
Pediu-lhe a bela filha (que em amores
Ardia toda do celeste Esposo)
Pêra esposa do filho, que sabia
Que já de amores dela todo ardia.

12 O rei bretão se achava descontente
Com a nova embaixada de Inglaterra:
Receia que se nela não consente,
O gentio lhe mova cruel guerra:
Porque sendo mais rico e mais potente,
Assi no largo mar, como na terra,
Quando desprezes visse de seu rogo,
Podia pôr Bretanha a ferro e fogo.

13 Sobre este não errado pensamento
Do medo de perder seu senhorio,
Novo discurso tinha e novo intento,
Com que se achava mais medroso e frio.
Estranhava o fazer ajuntamento
Da católica filha cum gentio;
Pois nem a lei de Cristo o permitia.
Nem Ursula fiel o admitiria.

14 Estando o pai em tal angústia posto,
Divinamente a filha já inspirada,
Lhe assegurava com sereno rosto
Que consentir podia na embaixada;
Dezendo que se o Inglês levava gosto
Dela com seu herdeiro ser casada,
Primeiro lhe mandasse dez donzelas,
Do reino as mais ilustres, as mais belas.

15 Que mil daria a cada virgem destas,
E que a ela outras mil também daria,
Todas de claro sangue, e em vista honestas.
(Destarte a conta de onze mil fazia)
Que por três anos dilação nas festas,
Além do já pedido, lhe pedia;
E naus e mantimentos, porque todas
Fossem com ela a Roma antes das bodas.

16 Ali sua pureza e virgindade
Queria com solene e sacro voto
Consagrar à divina Potestade,
Que o Céu e a Terra fez de próprio moto.
E que deixasse a vã gentilidade
Seu filho, pera genro ser de Noto,
Pera que neste espaço doutrinado
Fosse na fé de Cristo, e baptizado.

17 Com estas condições Ursula disse
Ao caro pai, que, a ser delas contente,
Podia responder; e despedisse
A proposta daquele rei potente:
Ou porque ouvindo-as ele desistisse,
Podendo-se aceitar dificilmente;
Ou porque, quando as virgens concedesse,
Consigo a seu senhor onze mil desse.

18 Oh, divino saber, quão soberano
Conselho é sempre o teu! quão remontado!
Oh, quanto o mor saber te cede humano,
Por mais que de rezões vá mais ornado!
Já dos ídolos deixa o cego engano
O príncipe, da virgem namorado;
Já terno pede ao pai quanto ela pede;
Já o pai quanto lhe roga lhe concede.

19 Já pera ti, ó virgem bela e branda,
Com ua singular velocidade,
Juntar se via dua e doutra banda
De feminil nobreza tenra idade.
As naus aparelhar o rei já manda;
Já nelas se recolhe a virgindade;
Já dão pera Bretanha ao vento velas.
O coração do noivo vai com elas.

20 Já vem a tomar porto onde esperava
Úrsula alvoroçada em grã maneira;
Que pêra as receber ali se achava,
Como senhora não, mas companheira.
Quão falsa era a Lei delas lhes mostrava,
A de Cristo quão pura e verdadeira.
Já se baptiza ua e outra dama;
Damas Úrsula já do Céu lhes chama.

21 A Fama, que não sabe repousar,
Voou de reino em reino, de ilha em ilha;
A gente que concorre não tem par,
Por ver a nunca vista maravilha.
Outros vêm por servir e acompanhar
A Virgem de rei nora, de rei filha.
Movem-se muitos bispos de Bretanha;
Pântalo em vida e morte os acompanha.

22 Por ti, deixando o reino, coa família
E quatro filhas suas, se embarcou,
Juliana, Vitória, Áurea, Babília;
(Um filho tinha mais que mais levou)
Gerasina, rainha de Sicília,
E com devido amor te acompanhou;
Que é justo que contigo vão rainhas,
Quando tu pera o rei dos reis caminhas.

23 Já se partem as belas peregrinas,
As mãos ao claro empíreo levantadas;
Já rompem, já, por ondas cristalinas
As naus de fermosura carregadas.
Quando, dezei, ó águas neptuninas,
Fostes de tal beleza navegadas?
Nunca, depois que a terra descobristes,
A tal frota por vós caminho abristes.

24 Com vento sempre igual, com mar bonança,
Sem perigos alguns, sem algum pejo,
Ceila foram tomar, porto de França,
Onde pouca demora fazer vejo.
O coração da Virgem não descansa,
Saudosa do fim de seu desejo;
Manda que levem ferro, soltem linho
Que leve por o mar o negro pinho.

25 vento nova posse vai tomando
Das virgens que lhes são encomendadas:
Com tal prosperidade vão voando,
Que já deixam atrás ondas salgadas:
Já nas doces do Reno estão entrando,
Onde têm suas vidas limitadas:
Ua cidade vem à míngua da água,
Que de vê-las morrer não teve mágoa.

26 Ah, Colónia cruel, que não te encobres
A tão fermosos olhos, que seguros
As altas torres viam que descobres,
Lustrosos edifícios, fortes muros!
Permite o largo Céu que fama cobres
De ser tão dura mãe de peitos duros?
Duros peitos, que a tantos, limpos de erro
Viram abrir sem dor com ímpio ferro?

27 Estando neste porto a bela armada
Tomando o necessário mantimento,
Pera poder seguir sua jornada,
E dar terceira vez o treu ao vento;
Sendo parte da noute já passada,
A Virgem lá no seu retraimento,
Quando estava dormindo toda a frota,
A Cristo orou assi, branda e devota:

28 - Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor, que amando vou toda rendida:
Com quem não há na vida pena grave,
Sem quem glória real não há na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pêra que veja, Amor, o que não vejo?

29 Amor, que de amor cheio e de brandura,
De amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e fermosura,
Não pode nunca haver cousa fermosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Ua vida tão fraca e duvidosa,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?

30 Amor, que por amor Te dispuseste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do Céu desceste;
Amor, que por amor à Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida deste;
Amor, que por amor a glória abriste,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?

31 Amor, que mais e mais sempre te aumentas
No coração que lá contigo trazes;
Amor, que de amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor Te satisfazes,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pera que veja, Amor, o que não vejo?

32 Amor, que com amor me cativaste;
(Se livre pode ser quem não cativas)
Amor, que em tais prisões m'asseguraste
As esperanças dantes fugitivas:
Amor, que suspirando m'ensinaste
A derramar por Ti lágrimas vivas,
Quando verei, Amor, o que desejo,
Pêra que veja. Amor, o que não vejo?

33 Quando verei um dia em que ofereça
Por Ti ao cruel ferro o peito forte,
E cercada de virgens apareça
Na tua soberana e eterna corte;
Onde lá cada ua Te mereça,
Cá passando comigo a própria morte;
E todas dando o sangue juntas, todas
Celebremos contigo eternas bodas?

34 Faze-me já, Senhor, esta vontade
Que tenho de Te ver, que sempre tive,
Dês que me deu lugar a tenra idade,
E lume de rezão nesta alma vive.
Não queiras, meu Amor, que a saudade
Sem tal bem a mi só da vida prive;
Que se muito se alarga este desterro,
Por ela irei a Ti, não por o ferro.

35 Desata o meu espírito saudoso,
Do nó mortal em que se vai detendo,
Primeiro que três vezes pressuroso
O Sol os doze signos vá correndo.
Espaço é que tomei, meu doce Esposo,
Pera outro esposo meu ir entretendo:
Mas a meu amor crendo, de Ti creio
Que acabes com a vida o meu receio.

36 Inda neste fervente e justo rogo
Úrsula suspirando procedia,
Quando dum resplandor como de fogo
Divina voz ouviu, que assi dezia:
- Ó virgem, que soubeste fazer jogo
Do que no mundo tem maior valia,
Entende que da volta que fizeres,
Aqui quero que seja o que tu queres.

37 Tanto que tal resposta do Céu teve,
Não quis do que esperava perder hora:
Já lhe parece larga a noute breve,
E que já tarda muito a bela Aurora.
Em descobrindo Apolo o carro leve,
Do porto de Colónia saiu fora.
Já Basileia em breve tempo toma:
E a pé dali partiram pera Roma.

38 O Pastor sumo, Ciríaco santo,
As sai a receber, e as acompanha
Com gozo espiritual, com grande espanto
De ver em tal idade fé tamanha,
Dezer se pode mal, mal cuidar quanto
Se goza o real sangue de Bretanha,
Os veneráveis templos visitando
Daqueles que também foi imitando.

39 Na própria noute deste próprio dia
Que Roma ver as virgens mereceu,
A quem de Pedro a Barca então regia
Revelou O que rege a Terra e Céu
Que martírio também receberia
Onde Úrsula coas mais o recebeu:
Deixa contente o grão pontificado,
Desejoso de ser martirizado.

40 Por mais que todo o clero sofre mal
Mover-se por aquelas estrangeiras,
Movido da vontade divinal
O bom Pastor se vai com as cordeiras.
Um arcebispo leva, um cardeal:
Três bispos deixam vagas três cadeiras,
De Luca, Ravicana e de Ravena:
Maurício me ficava já na pena.

41 Depois de n'água entrar, donde saíram,
Com tão fermoso Sol tantas estrelas,
Já as âncoras debaixo acima tiram,
E de cima já abaixo soltam velas.
Estas naus lá adiante outras naus viram,
Que fazendo-se vêm na volta delas;
Conheceram-se logo as duas frotas:
Ambas dum reino são, ambas devotas.

42 Ali, já rei erguido de Inglaterra,
Vinha de Úrsula bela o belo esposo,
Que reinar não queria já na terra,
Do Céu já namorado e saudoso.
Do seu primeiro amor venceu a guerra
A força doutro amor mais poderoso:
Amando já em seu Deus a esposa bela,
Pera o poder achar, buscava a ela.

43 A mãe, já convertida, traz consigo;
O pai, já cristão feito, falecera,
Com que soube evitar o grão castigo
Que, morrendo gentio, não soubera.
Amor celeste, como aqui não digo
O teu sublime obrar? (Ah, quem pudera!)
Por meio dua virgem foste meio
Com que gente copiosa a Cristo veio.

44 Vinha mais nesta nova companhia
Florência, irmã do Rei, da mãe cuidado;
Florência, que em beleza florecia,
Como flor em jardim bem cultivado.
Também a frota bispos dous trazia,
Um Marcelo, Clemente outro chamado:
O primeiro já em Grécia bago teve;
Do segundo o bispado não se escreve.

45 Outra virgem viúva ali mais vinha,
Que desposada sendo em tenra idade,
Antes das bodas enviuvado tinha,
E prometida a Cristo a castidade.
Esta do mesmo rei era sobrinha,
Filha da imperatriz da grã cidade,
Onde por culpa nossa, ou pouca dita,
Seu trono agora tem o fero Cita.

46 Estes, que adverte repetida história
Deixaram só por Deus altos estados,
Com outros, de que é menos a memória,
Foram divinamente amoestados
Que todos, pêra entrar juntos na glória,
Ao coro virginal fossem juntados,
Com quem na terra Mártires seriam,
E no Céu pera sempre reinariam.

47 Seria estranho o gozo que sentiram
Aquelas bem nacidas almas santas,
Quando juntas ali todas se viram
De partes tão remotas, e de tantas.
Sem estorvos, que dantes o impediram,
As duas, mais que todas, belas plantas
Ali abraços se dão sem algum pejo,
Ambas conforme já num só desejo.

48 Ali faria o rei acatamento
A quem deixou da Barca o grão governo;
E ele, conforme a seu merecimento,
Responderia com amor paterno.
Não faltaria em tal recebimento
Prazer exterior, prazer interno;
Inda que nos estados diferentes,
Todos seriam uns em ser contentes.

49 O vento as brancas velas não enchia,
Corria o frio Reno então mais quedo;
Antes pera Colónia não corria,
Por que as virgens não fossem lá tão cedo.
Parece que já claro conhecia
(Oh, coro virginal, sereno e ledo!)
Que lá vos esperava a ímpia morte.
Agora, ó Musa, conta de que sorte.

50 Aquele que na forma de serpente
Deixou aos dous primeiros enganados,
Envejoso de ver que tanta gente
Se convertia à Lei dos baptizados;
No coração entrou manhosamente
De dous gentios príncipes danados,
Da soberba romã cavaleria,
Por encurtar a Fé que se estendia.

51 A Fama os assegura com certeza
Que a virgem de Colónoia já voltava,
Com toda a casta juvenil beleza
Que por amor do Céu peregrinava.
Fizeram avisar com grã presteza
A um parente, que Júlio se chamava,
Soberbo capitão dos Hunos feros;
Que todos pera todas foram Neros.

52 Eis logo o cego príncipe gentio,
Com gente inumerável de seu mando,
A praia a tomar vem do mesmo rio
Por onde as virgens vinham navegando.
Já descobrem aquele, este navio
Os que estão do mais alto atalaiando:
Às armas veloz corre o bruto povo,
Por de novo as tingir no sangue novo.

53 Vindo a frota a surgir junto do muro,
Onde lhe parecia estar segura,
(Ó virgens, que buscais? lugar seguro
Adonde vos espera a sepultura!)
Entra com mão armada o povo duro
Por esta peregrina fermosura:
Já começa a provar os aços fortes;
Eis tudo sangue já, eis tudo mortes.

54 Já nu todas as virgens of’reciam
O delicado colo, o tenro peito:
Era pera caber quantas caíam,
Todo largo lugar, lugar estreito.
Do puro sangue os rios que corriam,
Outro vermelho mar já tinham feito.
Tu só, Córdula, à morte te escondeste;
Mas depois a buscaste e recebeste.

55 Ciríaco o primeiro, bem constante,
A vida ao ferro ofrece sem espanto:
O moço rei inglês caiu diante
Daqueles castos olhos que amou tanto.
Espera, brando esposo, um breve instante;
Espera a tua doce esposa, em tanto
Que outro Amor outro golpe lhe prepara;
E juntos entrareis na pátria cara.

56 Em qual terra, ó cruéis, em qual cidade,
Antre quais gentes mais a furor dadas,
Se não usou de amor e de piadade
Com fermosas donzelas desarmadas?
Como beleza tanta e tal idade
Vos deixou arrancar vossas espadas?
Ah, lobos carniceiros, tigres bravos,
Filhos da crueldade, d'ira escravos!

57 De quantos animais sustenta a terra
Nunca tanta crueza foi usada;
Inda que tenham uns com outros guerra,
Nunca do macho a fêmea é lastimada:
Anda a cerva co cervo por a serra,
A novilha do touro acompanhada,
A leonesa o leão defender preza:
Vós sós quebrais as leis da Natureza?

58 Puderam outros olhos porventura
De lágrimas divinas escusar-se,
Vendo, coberta já de névoa escura,
A luz de tantos belos apagar-se?
Vendo a purpúrea rosa, a cecém pura
Em tão fermosas faces descorar-se?
As tranças d'ouro vendo, espedaçadas,
Por debaixo dos pés andar pisadas?

59 Na força desta fúria acesa e brava
O tirano cruel a vista ergueu
À virgem, que invencível animava
As almas que juntara para o Céu.
Assi já envolta em sangue como andava,
Da sua fermosura se venceu;
E com doces rezões que Amor ensina
A vencê-la de amor se determina.

60 Fingindo se arrepende do passado,
(E de fingi-lo se arrepende asinha)
Sua vida lhe oferece e seu estado,
Sem ver que estado e vida a perder vinha.
O seu amor lhe pede confiado;
O seu amor que dado a seu Deus tinha:
Pede-lhe o seu amor; antes não seu,
Porque já dado o havia a quem lho deu.

61 Usa de mil lisonjas, mil enganos,
Por conseguir o seu desejo bruto:
«A flor logra (dezia) de teus anos,
Colhe dessa beleza o doce fruto:
Não dês matéria nova a novos danos,
Não pagues verde à morte o seu tributo:
Olha que tens em mim (não são cautelas)
Outro reino, outro esposo, outras donzelas.

62 Não faças mentirosa a Natureza
Que dá d'amor em ti grande esperança.
Que se pode alcançar dessa beleza,
Se já piadade dela não s'alcança?
Aos tigres, aos leões deixa a braveza,
E deixa aos meus soldados a vingança.
Se por ver-me cruel queres ser crua,
Já te vingas de mim em cousa tua.

63 Volve esses olhos já com mais brandura;
Esses olhos, d'amor doce morada:
Deles não faça em mim a fermosura,
O que em tantos já fez a minha espada.
Se queres derribar minha ventura,
Que deles estar vejo pendurada,
Acabarei de ver quão pouco tenho,
Pois donde a matar vim a morrer venho.

64 Como do rogo meu não te aproveitas,
Quando o teu risco a me rogar te obriga?
Ou não conheces bem a quem enjeitas,
Ou me enjeitas por mais que seja e diga.
Em que cuidas, Senhora? ou que suspeitas?
Mais próprio era chamar-te dura imiga.
Mas não consente amor nome tão duro
Em parecer tão brando e tão seguro.

65 Os raios desses olhos já serenos
Enxuguem desse rostro as puras rosas;
O triste suspirar já soe menos
Nestas concavidades saudosas.
Não façam grande mal males pequenos;
Que não sofre esperanças vagarosas
Quem anda costumado em seus amores
A medir por seu gosto seus favores.

66 Que gosto podes ter de maltratar-me,
Vendo-me do passado arrependido?
Atenta que mais ganhas em ganhar-me,
Do que neste destroço tens perdido.
Se queres insistir em desprezar,
Ver-me-ás, sobre amoroso, enfurecido.
Não me declaro mais, porque não quero
Que o medo faça o que de amor espero.»

67 — Ah pérfido amador, deixa o teu erro.
Não vês quanto enganado e cego andas?
Aquela a quem não vence o duro ferro,
Como a podem vencer palavras brandas?
Manda a sua alma já deste desterro,
Com essas que a seu doce Esposo mandas.
Não a detenhas mais em teus amores,
Se dobrar-lhe não queres suas dores. —

68 Vendo o cruel, enfim, que o que dezia,
Tomava a bela virgem por afronta,
E que quanto de amor mais se acendia,
Ela dele fazia menos conta;
No côncavo arco que na mão trazia,
Ua seta embebeu de aguda ponta,
E o peito lhe passou de banda a banda.
Assi rendeu o esprito a virgem branda.


69 Vai-te, Esprito gentil, desta baixeza;
As asas abre já, já a luz derrama;
Voa com desusada ligeireza
Onde o teu bem te espera, onde te chama.
Verás baixa do mundo a mor alteza;
Verás que engana mais a quem mais ama;
E lá do teu Amor, cá suspirado,
O fruito colherás tão desejado.

70 Em paz te vai, ó alma pura e bela,
Mais bela inda no sangue que verteste;
Vai-te alegre a gozar, vai já daquela
Fermosa região, alta e celeste.
Coroada de glória imortal, nela
Com Cristo lograrás a quem te deste
Com tantas e tão bem nacidas almas,
(Fermosura do Céu) onze mil palmas.

29 agosto 2007

VISITA AO CONVENTO DE MAFRA

Anteontem, dia 27 de Agosto, estive em Mafra. Eu tinha passado lá oito meses no longínquo ano de 1974 e tinha voltado uma ou outra vez mais tarde. Mas anteontem fui para tirar fotografias, pois gostava de ter algumas do Convento, com qualidade, para mostrar aos meus alunos quando acaso tivesse de acompanhar de novo a leitura do Memorial do Convento.
Para fotografias de exterior o dia e a hora eram do melhor. Céu limpo e azul, sol a brilhar contra a fachada. Para o interior, a situação era bem outra, pois a minha câmara digital não era capaz de fazer milagres.
Pela primeira vez – e devia dizê-lo com vergonha – pude admirar algumas das extraordinárias belezas daquela fantástica construção. Só por inveja, pareceu-me, se podia escrever o que Saramago pôs no seu lamentável romance. Há ali grandiosidade, há proporção, há arte excelente.





A frente soberba do Palácio Convento com o seu mármore a brilhar ao sol.


E que dizer desta fachada da Basílica? Tudo aqui é rico, belo e harmonioso.



Tudo encanta nesta pórtico da Basílica, com as suas belíssimas colunas coríntias, os seus frontões, com os seus medalhões, com as suas estátuas, com a excelente combinação dos tons do mármore.



Foi certamente nesta grande composição da capela-mor que Ludovice investiu o melhor da sua arte e da riqueza de que dispunha. Mas não se tem nunca a sensação de esbanjamento, bem ao contrário. Há em tudo isto algo de feérico, algo que assombra.



Sobre o transepto, a chave-de-ouro da cúpula inunda a Basílica de luz.

BOCAGE, AUTOR DE POESIA RELIGIOSA

Bocage, apesar da vida libertina em que se afundou vários anos, nunca inteiramente se afastou do Cristianismo; ele mesmo o declara num soneto, dirigindo-se a Deus:

Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.

Mas depois de vencido o “desatino das paixões”, no período final da sua breve vida – morreu com 40 anos – operou-se nele uma reviravolta muito marcada, regressando a uma vivência cristã entusiasta.
São desse período duas boas dezenas de poemas que fazem dele um poeta de tema religioso notável. Os mais deles são sonetos, mas há depois umas quatro odes que cantam Nossa Senhora, além de um trecho traduzido. Ao todo, disposta numa só coluna, a colecção destes textos enche dezanove páginas.
Em qualidade eles não são de nenhum modo inferiores ao resto da produção do poeta – se é que não lhe são superiores.
Quanto ao conteúdo, ora fazem afirmações de ordem teológica geral ora reflectem a sua vivência pessoal da fé. Os sonetos, mais próximos desta segunda orientação, serão porventura mais interessantes pela original actualidade dos temas abordados. Vejam-se alguns títulos: A existência de Deus provada pelas obras da criação, Contradições do ateísmo, Hino a Deus, Confiança na misericórdia divina, O retrato de Deus desfigurado por ministros embusteiros, Tentativa de suicídio combatida pelas lembranças da Eternidade, Vendo-se exposto a tribulações imerecidas, Afectos dum coração contrito, Sentimentos de contrição e arrependimento da vida passada, Ditado entre as agonias do seu trânsito final, Invocando o amparo de Maria Santíssima, A Paixão de Jesus Cristo, etc.
O conceito de Deus não é no poeta muitas vezes tão evangélico como se desejaria; parece antes colhido em páginas talvez mal digeridas do Antigo Testamento ou mesmo de origem pagã. É possível que, apesar de tudo, ainda supere o da pregação comum do seu tempo. No Hino a Deus, por exemplo, o leitor tem algumas dificuldades em identificar o Deus bíblico, que é Amor:

Pela voz do trovão corisco intenso
Clama que à Natureza impera um Ente,
Que cinge do áureo dia o véu ridente,
Que veste da atra noite o manto denso.

Pasmar na imensidade é crer o Imenso;
Tudo em nós o requer, O adora, O sente;
Provam-Te olhos, ouvidos, peito e mente?
Númen, eu ouço, eu olho, eu sinto, eu penso!

Tua ideia, ó Grão-Ser, ó Ser divino,
Me é vida, se me dão mortal desmaio
Males que sofro e males que imagino:

Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.

Mas esta perspectiva de Deus, que parece aproximá-Lo dum Júpiter, vinca ainda mais a originalidade, essa sim cristã, dum poema como O retrato de Deus desfigurado por ministros embusteiros ou Confiança na misericórdia divina, onde o autor rejeita o conceito de um Deus distante das pessoas, só omnipotente, de quem se ignora a dimensão paternal. Veja-se o segundo destes poemas:

Lá quando a Tua voz deu ser ao nada,
Frágil criaste, ó Deus, a Natureza;
Quiseste que aos encantos da belezaAmorosa paixão fosse ligada:

Às vezes em seus desgostos desmandada,
Nos excessos desliza-se a fraqueza;
Fingem-Te então com ímpeto e braveza
Erguendo contra nós a dextra armada.

Ó almas sem acordo e sem brandura,
Falsos órgãos do Eterno! Ah!... Profanai-O,
Dando-Lhe condição tirana e dura!

Trovejai, que eu não tremo e não desmaio;
Se um Deus fulmina os erros da ternura,
Uma lágrima só Lhe apaga o raio.

A sua vivência da relação com Deus leva-o a pôr frontalmente em causa o pensamento teológico dominante, o que é uma ousadia louvável, mesmo se às vezes feita em termos menos aceitáveis, nascidos do seu pendor de polemista.
A dimensão mais propriamente católica destes poemas descobre-se sobretudo nos textos sobre Nossa Senhora e mesmo em A Paixão de Jesus Cristo, que se segue:

O Filho do Grão-Rei, que a monarquia
Tem lá nos Céus, e que de Si procede,
Hoje, mudo e submisso, à fúria cede
De um povo, que foi Seu, que à morte O guia.

De trevas, de pavor se veste o dia,
Inchado, o mar o seu limite excede,
Convulsa a terra, por mil bocas pede
Vingança de tão nova tirania.

Sacrílego mortal, que espanto ordenas,
Que ignoto horror, que lúgubre aparato!...
Tu julgas teu Juiz!... Teu Deus condenas!

Ah, castigai, Senhor, o mundo ingrato:
Caiam-lhe as maldições, chovam-lhe as penas,
Também eu morra, que também vos mato.

Leia-se também o soneto Invocando o amparo de Maria Santíssima, onde o seu habitual imaginário hiperbólico quase se anula, numa atitude de simplicidade filial:

Tu, por Deus entre todas escolhida,
Virgem das virgens; Tu, que do assanhado
Tartáreo monstro com Teu pé sagrado
Esmagaste a cabeça entumecida;

Doce abrigo, santíssima guarida
De quem Te busca em lágrimas banhado,
Corrente com que as nódoas do pecado
Lava uma alma que geme arrependida;

Virgem, de estrelas nítidas c’roada,
Do Espírito, do Pai, do Filho Eterno,
Mãe, Filha, Esposa e, mais que tudo, amada:

Valha-me o teu poder e amor materno;
Guia este cego, arranca-me da estrada
Que vai parar ao tenebroso inferno!

A imaginação de Elmano comprazia-se em realidades apocalípticas, de grande efeito. Os poemas dedicados a Nossa Senhora haviam por isso de lhe ser particularmente queridos, pois gosta de A apresentar como a vencedora de Satã, num cenário algo dantesco. O “tartáreo monstro” vencido (que no soneto apareceu de fugida) surge sempre nas quatro odes À Puríssima Conceição de Nossa Senhora, A Santíssima Virgem, a Senhora da Encarnação, À Puríssima Conceição de Nossa Senhora e À Imaculada Conceição de Nossa Senhora.
Exprime-se assim em A Santíssima Virgem, a Senhora da Encarnação:

Acatamento em si e audácia unindo,
Sobre o jus de imortal firmando os voos,
A impávida Razão, celeste eflúvio,
Se eleva, se arrebata.
Por entre imensa noite e dia imenso
(Mercê do condutor, da Fé, que a anima)
Sobe de céus em céus, alcança ao longe
O grão Princípio dos princípios todos.

Além do firmamento, além do espaço
Que, por lei suma, franqueara o seio
A mundos sem medida, a sóis sem conto,
Imóvel trono assoma:
De um lado e de outro lado é todo estrelas;
Vence ao diamante a consistência, o lume;
Absortos cortesãos o incensam curvos,
Tem por base e dossel a eternidade.

Luz, de reflexos três, inextinguível,
Luz, que existe de si, luz de que emanam
A natureza, a vida, o fado, a glória,
Dali reparte aos entes
Altas virtudes, sentimento augusto;
Aos entes, que na Terra extraviados,
Das rebeldes paixões entre o tumulto
Ao grito do remorso param, tremem.

Filho do Nada! Um Deus te vê, te escuta!
Seus olhos imortais do empíreo cume
(Aos teus imensidade, aos d'Ele um ponto)
Atentaram teus dias,
Teus dias cor da morte, ou cor do Inferno;
De alma em alma grassando a peste avita;
Hálito de serpente enorme, infesta,
Da primeva inocência a flor crestara:

Aos dois (como Ele) do Universo origem
Diz o Nume em si mesmo: — «O prazo é vindo;
Cumpra-se quanto em nós disposto havemos.»
Eis o Espírito excelso,
Radiosa emanação do Pai, do Filho,
Mística pomba de pureza etérea,
A Donzela Idumeia inclina os voos,
Pousa, bafeja, e diviniza o puro.

Tu, Verbo, sobrevéns; aérea flama
Com tanta rapidez não sulca o pólo!
Eis alteado o grau da humanidade;
Eis fecunda uma virgem:
A redenção começa, o Deus é homem.
Da graça, da inocência, oh paz, oh risos,
Do Céu vos deslizais, volveis ao mundo!
Caí, torres de horror, troféus do Averno!

Que estrondo!... Que tropel!... Ao negro abismo
Que desesperação revolve o bojo!...
Para aqui, para ali por entre Fúrias
O sacrílego monstro,
O rábido Satã em vão blasfema.
Lá quer de novo arremeter ao mundo;Mas vê rapidamente aferrolhado
O tartáreo portão com chave eterna.

Enquanto brama, arqueja, enquanto o fero
Morde, remorde as mãos, e a boca horrenda
(As espumas veneno, os olhos brasas)
Mulher divina exulta;
Celestial penhor, que os anjos cantam,
Que as estrelas, que o Sol, que os Céus adoram
Virgem submissa, mereceu na Terra
Circunscrever em Si do Empíreo a glória.

Salve, oh! salve, imortal, serena Diva,
Do nume oculto incombustível sarça,
Rosa de Jericó por Deus disposta!
Flor, ante quem se humilham
Os cedros de que o Líbano alardeia!
Ah, no teu grémio puro amima os votos
Aos mortais de que és Mãe: seu pranto enxugue,
Seus males abonance um teu sorriso!

Bocage tinha certamente pouco de filósofo, mesmo tendo nascido no século do Iluminismo e sendo contemporâneo de Kant. Para afirmar a existência de Deus ele não recorre a subtilezas filosóficas, basta-lhe aquele bom-senso de todos os tempos e que está no famoso verso bíblico que declara que «os céus cantam a glória de Deus». Os céus e toda a criação, como está na Eucaristia, quando se diz que “os Céus e a Terra proclamam a Vossa glória”. É assim no soneto A existência de Deus provada pelas obras da criação:

Os milhões de áureos lustres coruscantes
Que estão da azul abóbada pendendo;
O Sol e a que ilumina o trono horrendo
Dessa que amima os ávidos amantes;

As vastíssimas ondas arrogantes,
Serras de espuma contra os céus erguendo;
A leda fonte humilde o chão lambendo,
Lourejando as searas flutuantes;

O vil mosquito, a próvida formiga,
A rama chocalheira, o tronco mudo:
Tudo que há Deus a confessar me obriga.

E para crer num braço, autor de tudo,
Que recompensa os bons, que os maus castiga,
Não só da fé, mas da razão me ajudo.

Um pouco de atenção a este filão da sua poesia faz logo outra luz sobre um poema recorrente nos manuais escolares, o soneto Ditado entre as agonias do seu trânsito final:

Já Bocage não sou, à cova escura
eu estro vai parar desfeito em vento.
Eu aos céus ultrajei, o meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.
Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa, tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!
Eu me arrependo: a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:
Outro Aretino fui!... A santidadeManchei!...
Oh, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

O poeta, que cortou com o passado libertino, que “viver não soube” mas que soube morrer, media bem o alcance do seu apelo agónico. Há coisas boas em literatura, mas há também muitas más, e essas são para “rasgar” sem hesitação, como ele suplica.
Como este Bocage está distante das muitas páginas de lama que enchem o Memorial do Convento (do Convento erguido poucas décadas antes do seu nascimento), que a nossa juventude “tem” de ler!

28 julho 2007

MISERERE MEI!...

A história da sanha anticristã contemporânea que se manifestou na Europa especialmente a partir da segunda metade do séc. XIX é também a história, pouco divulgada, da conversão de nomes notáveis. Lembrem-se Baudelaire, Paul Claudel, Francis Jammes, Charles Dubos, etc.; o próprio Renan mostrou arrependimento à hora da morte. Entre nós também houve regressos célebres, como os de Guerra Junqueiro, Gomes Leal e outros. Eça de Queirós, que na segunda parte de A Cidade as Serras revela uma aproximação à tradição católica do nosso país, terá morrido a rezar segundo autores fidedignos.
O soneto Miserere mei!... (Tende piedade de mim!...) que se transcreve, de Gomes Leal (1868-1921), é o poema do convertido que encontra a verdade pelas mãos da Mãe de Deus – Nossa Senhora das Dores, no caso.
A epígrafe «Les Mères! Les Mères!» (As Mães! As Mães!) vem do Fausto de Goethe, certamente na célebre tradução francesa de Gérard Nerval.


MISERERE MEI!...

Les Mères! Les Mères!
Faust

Às risadas entrei numa igreja às matinas.
— Conservava-se ateu meu coração corrupto. —
Eis vejo sobre o altar o estranho ser de luto,
Rasgado o coração por sete espadas finas.

Chorei. Prostrei-me em terra. — Essas formas divinas
Não as pude fitar de rosto calmo e enxuto!
Era a mão maternal... era o braço impoluto...
Que afastavam meus pés das ervas das ruínas!

Era o bafo de mãe, a indulgência, o carinho,
Era a asa que afaga o implume passarinho,
A mão que enxuga a testa ao menino, a dar ais...

Ó Mãe triste! Ó Mãe terna! Ó Mãe dos olhos castos!
Acolhe esta alma em pranto, hirta ao frio, de rastos,
- Qual triste enjeitadinha à porta de seus pais!

30 junho 2007

O ÍCONE DA BEATA ALEXANDRINA

Em 20 de Junho foi benzida em Balasar a versão portuguesa do Ícone da Beata Alexandrina. Trata-se duma peça de arte muito culta. A iconógrafa, Doménica Ghidotti, é italiana, mas completou a sua formação em S. Petersburgo. Com o ícone, transcrevemos aqui uma longa citação do opúsculo bilingue que na altura se publicou.




O ícone representa ao centro a Beata Alexandrina mergulhada na luz divina, que na iconografia é dada com o ouro puro. É representada com o vulto dos seres humanos mas na sua essência, no seu núcleo espiritual, na sua verdade eterna. A forma humana é sujeita a um sistema geométrico, rítmico e cromático apto a sugerir a essência espiritual e divina de quem entrou na luz eterna. O seu santo vulto é sereno e sorridente, mas igualmente absorto e dirigido para o orante. Um leve sorriso que esconde um segredo: o segredo da sua vida. Jesus exorta Alexandrina a sorrir na dor, a aceitar com alegria toda a prova e sofrimento.
“Minha filha, minha filha, a alma que Me ama, a alma esposa de Jesus, a alma vítima, encontra alegria só na cruz, só na cruz se delicia. Quero que os teus olhos e os teus lábios sorriam a todo o sofrimento para que tu sejas sempre, com toda a heroicidade, a louquinha da cruz, a louquinha das almas, a louquinha de Jesus, a louquinha do amor. Tem coragem: o Céu assiste-te. Oferece-Me a tua dor escondida no sorriso e no amor. Sorri à dor para que Eu possa sorrir quando julgo os pecadores. Permanece na tua cruz, permanece com alegria: esconde o martírio da tua alma com o teu sorriso, o mais que te seja possível. É com teu sorriso, ou melhor com meu sorriso que está nos teus lábios, que fazes o bem, um grande bem, o maior bem a tão grande número de almas. Eu estou no teu coração com o Pai e com o Espírito Santo: falo com os teus lábios e sorrio nos teus lábios”.

Alexandrina é figurada intimamente unida à Cruz de Cristo, com Ele crucificada. O amor pela Paixão de Cristo, que ela viverá fisicamente e misticamente de modo sempre mais intenso, sofrendo as dores da agonia, da coroação de espinhos, da flagelação, da morte na cruz, leva-a a uma crescente sede de almas. Aumenta nela o desejo de sofrer e de amar em união com a redenção operada por Jesus para a conversão a salvação dos pecadores. Também a sua veste se transforma; a sua origem é de cor verde a sublinhar a natureza humana, mas esta transforma-se e irradia luz vermelha, sinal do poder do amor de Deus que queima o seu espírito até ao martírio do corpo e do coração.
“Dá-Me as tuas mãos, que as quero crucificar; dá-Me os teus pés, que os quero cravar comigo; dá-Me a tua cabeça, que a quero coroar de espinhos como Me fizeram a Mim; dá-Me o teu coração, que o quero trespassar com uma lança, como Me trespassaram a Mim; consagra-Me todo o teu corpo, oferece-te toda a Mim”.
“Une à minha angústia a tua, à minha agonia a tua, ao meu Calvário o teu: é calvário de dor, é calvário de salvação...”.



Alexandrina participa aos sofrimentos de Cristo e recebe até os seus estigmas, que ficarão sempre invisíveis, mas dolorosíssimos.
Minha filha, tiro bálsamo das minhas chagas para as tuas, ocultas mas dolorosas, bem profundas, para que as tuas mãos semeiem pelas chagas dolorosas a minha semente divina e para que os teus pés, que não caminham, pelas chagas abertas arranquem dos caminhos errados as almas que correm para a perdição. (…)
Tiro bálsamo das feridas da minha sacrossanta cabeça para a tua, para suavizar a dor dos teus espinhos, para, mais forte, poderes com este sofrimento arrancar dos espíritos as más inclinações e os pensamentos criminosos que tanto me ofendem.
Do meu Coração divino tiro bálsamo amoroso, bálsamo de fogo, para que Me ames e faças amado, para que ateies este fogo, este amor, para que possuas sempre a ternura, a doçura do meu”.

Da mão esquerda desce uma cartela com duas inscrições: “Completo no meu corpo o que falta à Cruz de Cristo”, a indicar a sua qualidade de alma-vítima, cooperadora da Redenção. O outro mote “Amar, sofrer, reparar” é a síntese do seu programa de vida espiritual e apostólica.
“Tu vives com a minha vida, sofres com a minha dor, amas com o meu amor: vives com a minha vida porque com ela te faço viver; sofres com a minha dor porque to faço sentir, enquanto és vítima para Me reparares; amas com o meu amor porque to infundi em teu coração para com ele Me amares e fazeres que Eu seja amado”.

Na mão direita tem o Terço: é o convite que nos transmite a mantermo-nos num constante colóquio com a Mãe celeste e sinal do seu zelo em propagar a prática do S. Rosário.
“...veio a Mãezinha: cobria-a manto branco e dourado. Tomou-me nos seus braços, acariciou-me, enrolou-me nas minhas mãos o Rosário que pendia das Suas e deu-me e enrolou-me nas minhas mãos a cruz que o rematava, depois de a beijar o Rosário:
- Minha filha, eu sou a Virgem do Rosário: estou contente contigo por aconselhares a rezarem ao menos o Terço em minha honra. Continua: é devoção de salvação. O mundo agoniza e morre no pecado. Quero oração, quero penitência. Enrola, minha filha, neste meu Rosário, os que amas e são teus: também Eu os amo e Jesus os ama; enrola os que às tuas orações se recomenda às tuas orações, enrola o mundo num molhinho, como Eu a ti te enrolei; estreita-o ao teu coração como Eu a ti te abracei...”

“Fala às almas da Eucaristia, fala-lhes do Rosário; que se alimentem da Carne, do Corpo de Cristo e do alimento da oração, do meu Terço quotidiano”.


Alguns dias depois, é Jesus que põe entre as mãos da Alexandrina a Cruz do Rosário:
“...Jesus deu-me para as mãos a Cruz que pendia do Rosário: desta vez, não ficou enleado nas mãos. Ficou estendido e aberto; alguém do outro lado o sustentava. Jesus meteu-Se no meio do Rosário, abrindo-o cada vez mais e disse: - Firma nas tuas mãos a Cruz, cinge-o bem ao teu coração. A humanidade inteirinha vai ficar dentro do Rosário.

Fala às almas, fala-lhes do Rosário e da Eucaristia. O Terço, o Terço, o Rosário, o rosário! A Eucaristia, o meu Corpo, o meu Sangue! A Eucaristia com as Minhas vítimas: eis a salvação do mundo...”.

Aos lados da cabeça da Beata estão representados:
À esquerda o arcanjo Gabriel que entrega à Alexandrina a Hóstia, sinal quer da sua missão para com os sacrários, quer do facto de que durante 13 anos se alimentou unicamente da Eucaristia. Na ausência do sacerdote recebia a Comunhão das mãos angélicas. À Alexandrina Jesus confiou o pedido da Comunhão nas primeiras quintas-feiras de seis meses consecutivos em honra da Santíssima Eucaristia, adorando nela a Sua perene Presença e contemplando simultaneamente o Seu perene Sacrifício.

“Minha filha, minha esposa querida, vais agora receber-Me pelas mãos do teu Anjo da Guarda. Vêm ao seu lado S. Miguel Arcanjo e o Anjo S. Gabriel. Atrás deles seguem-nos uma grande multidão deles. Prepara-te: descem do Céu.
... Inclinou-se para mim o Anjo. Eu estendi-lhe a língua … Fiquei mergulhada em amor, numa intimidade com Jesus: parecia-me inseparável dele.
- Minha filha, dei-Me a ti em alimento: sou a tua vida. Dei-Me desta forma para mais e melhor mostrar as minhas maravilhas e para mostrar que estou contente com os meus representantes na terra, com a doutrina da minha Igreja”.
“Faço que tu vivas só de Mim para mostrar ao mundo o valor da Eucaristia, e o que é a minha vida para as almas…”.

“Não te alimentarás jamais na terra. O teu alimento é a minha Carne, o teu sangue é o meu Divino Sangue, a tua vida é a minha Vida: de Mim a recebes quando te bafejo e te acalento, quando uno ao teu o meu Coração”.
“Minha filha, minha querida esposa, faz que Eu seja amado, consolado e reparado na minha Eucaristia. Diz em meu nome que todos aqueles que comungarem bem, com sinceridade e humildade, fervor e amor em seis primeiras quintas-feiras seguidas e passarem uma hora de adoração diante do meu sacrário em íntima união comigo, lhes prometo o Céu”.

À direita o arcanjo Miguel, que entrega à Alexandrina o Cálice da Eucaristia, sinal das transfusões de sangue que recebia de Jesus como sinal da sua participação na Paixão e como único alimento.
“...faço-te uma nova transfusão, para que Cristo viva na sua crucificada e a Sua crucificada viva em Cristo. Venho alimentar a tua alma como Médico Divino e dar ao teu corpo aquilo que o médico da terra não poder dar-te: o meu Divino Sangue, o meu Divino Amor, para que tu vivas e dês a vida às almas”.
“Queria que todos conhecessem aquele mistério do pão e do vinho transformados no Corpo e no Sangue do Senhor. Milagre prestigioso! Abismo insondável de amor!...”.

28 maio 2007

AINDA O «MEMORIAL DO CONVENTO»

Eu li pouco da obra de Saramago e pouco sobre ela. Mas pouco é diferente de nada, e além disso não sou propriamente um principiante na leitura de obras de ficção narrativa. Em particular, li o artigo do Prof. Carlos Reis que vem na Biblos Enciclopédica Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa; nas entrelinhas dele, creio que este professor de Coimbra vai deixando transparecer que a sua admiração pelo autor do Memorial do Convento não é muito grande. Bem vistas as coisas, não me parecem de valor garantido as qualidades que lhe atribui.
Mas ao lado de Carlos Reis, há os delirantes. Há até quem aproxime Blimunda de Nossa Senhora e atribua a Saramago a criação duma espécie de nova eucaristia!
Vindo porém a coisas mais comuns, as autoras do manual que uso, aqui já referidas, ao expor as «marcas essenciais» da linguagem literária de Saramago, começam a sua lista por esta: «a ausência de pontuação convencional, sendo a vírgula o sinal de pontuação de maior relevância, marcando as intervenções das personagens, o ritmo e as pausas». A segunda vai pelo mesmo caminho: «o uso subversivo da maiúscula no interior da frase».
Se estas fossem as principais, logicamente a seguinte deveria ser a de que ele não dá erros ortográficos (salvo algumas gralhas[1])… Depois vêm contudo outras já mais criticamente válidas.
Mas o que não se encontra na lista destas «marcas essenciais» é a referência ao vocabulário do tipo de «merda e mijo».
Num país de longa tradição e maioria católica, no ano anterior os alunos do 12.º ano tiveram de comentar esta original opinião de Óscar Lopes: «Memorial do Convento […] traça do século XVIII uma visão extraordinária».
Mas se romance se ocupa só de cerca dum quarto de século, como há-de ele dar a visão do século todo? E depois de D. João V não houve o Marquês de Pombal? Barroco e Neoclassicismo é tudo o mesmo? Distorcendo esta narrativa tanto a verdade histórica, onde pode estar o carácter extraordinário dessa visão?
Eu não sou historiador, mas apelo para um, o autor do artigo sobre D. João V na Enciclopédia Verbo. Há real parecença entre este D. João V da história e o de Saramago? Entre o padre Bartolomeu da história e o do romance, penso que medeia um abismo…
A palavra saramago designa originalmente uma erva daninha[2]. Eu conheci-a muito bem nos campos minhotos, a ela e à soagem, que andavam quase sempre juntas. Mas o dicionário do meu computador só apresenta saramago com maiúscula…

[1] Na edição que uso (21.ª), na página 145, ao fundo, aparece este título em latim «Iuris ecclesiastici libri tre, Colectanea doctorum tam veteram quam recentiorum in ius pontificum universum […]»; mas as palavras tre e veteram estão erradas, por tres e veterum.
[2] Digo daninha, porque foi sempre assim que a vi tratada, por infestar as culturas; se noutros lugares pessoas a usavam para alimento, eu nunca tive essa experiência.

22 maio 2007

«MEMORIAL DO CONVENTO»: BLASFÉMIA E MILAGRE

D. Duarte de Bragança terá sido das pessoas que melhor se pronunciaram sobre Saramago quando o escritor recebeu o Prémio Nobel. Disse então:
«É um autor de leitura difícil e pesada, que insulta abertamente os sentimentos cristãos. Duvido que os membros do júri tenham lido os seus escritos. É como se tivéssemos ganho o campeonato de futebol: é bom, mas não tem muito conteúdo».
Vindo ao meu título, blasfémia e milagre caminham de mãos dadas ao longo das páginas do Memorial do Convento. A blasfémia, já a conhecíamos de muitos autores, de Eça a Guerra Junqueiro, de Pessoa a Torga e certamente a outras sumidades das Letras que me honro de conhecer mal. Mas aqui ela requinta: é gratuita e constante. Além disso, vai directa ao coração do Cristianismo: à Trindade Santíssima, aos Sacramentos, aos Santos, aos Sacerdotes e aos Monges, à Sagrada Escritura.
Uma das mais primárias e ridículas é a que se contém nas frases seguintes:
«Que está a dizer, padre Bartolomeu Lourenço, onde é que se escreveu que Deus é maneta, Ninguém escreveu, não está escrito, só eu digo que Deus não tem a mão esquerda, porque é à sua direita, à sua mão direita, que se sentam os eleitos, não se fala nunca da mão esquerda de Deus, nem as Sagradas Escrituras, nem os Doutores da Igreja, à esquerda de Deus não se senta ninguém, é o vazio, é o nada, a ausência, portanto Deus é maneta. Respirou fundo o padre, e concluiu, Da mãe esquerda».
Este padre Bartolomeu de Saramago usa a lógica da batata: não se fala duma coisa, logo ela não existe. Antes de Colombo, não existia a América.
Por sinal a Sagrada Escritura até fala da esquerda de Deus:
Quando o Filho do homem vier em sua glória com todos os seus anjos, então se assentará no seu trono glorioso. (…) Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos, à esquerda. E o rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, benditos de meu Pai! Tomai posse do Reino preparado para vós desde a criação do mundo. Porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, enfermo e me visitastes, estava na cadeia e viestes ver-me’. E os justos perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? (…)
Depois dirá aos
da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos!' (cap. 25 do Evangelho de S. Mateus).
O «povinho» de Saramago é muito diferente do dos dirigentes políticos de esquerda. Veja-se como ele acompanha um auto de fé: «Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham as mulheres debruçadas dos peitoris», cospe o mesmo povo para os condenados, atira-lhes «cascas de melancia e imundícies». Este não é o povo sábio, aquele que «mais ordena», é mais ao modo de Salazar.
Não admira por isso que seja crédulo. E nem o é tanto por força da pregação oportunista dos clérigos, coisa que Saramago descobre em muitas ocasiões. Não, ele cria os seus milagres, que os clérigos secundam, ampliam e também criam. Vive-se num mundo de maravilha – ao serviço do ridículo e do sarcasmo. Até Blimunda é uma personagem milagrosa; até a passarola voa por um milagre!
Um mundo de confusão, de crença tonta e … de Santo Ofício. Que mundo povoa a cabeça de Saramago!

16 maio 2007

O «MEMORIAL DO CONVENTO» OU O REI QUE VAI NU

Há talvez uns sete anos, uma colega insistiu comigo para que lesse Saramago, que ia gostar. E dizia que já tinha um dia convencido certa professora, que depois se entusiasmara com a obra do escritor. Mas eu mantive-me na minha: não achava que ele tivesse nada de interessante para me dizer. Achava-o rude e preconceituoso e tinha muito mais com que me ocupar.
Este ano porém não pude evitar o Memorial do Convento, pois tinha de acompanhar os meus alunos na sua leitura.
Dizer que foi para mim uma decepção não é muito correcto, pois as minhas expectativas não eram altas; mas dizer que não gostei é a inteira verdade.
Que rudeza, que primarismo! E mentiras como não esperava!
Penso que a intenção que comanda o autor é ridicularizar a Igreja, aquela Igreja em que me integro desde que me conheço e a que tenho dedicado muitos dos melhores momentos da minha atenção e da minha vida.
Saramago sabia com certeza que o projecto inicial do Convento de Mafra era o dum edifício muito modesto, para 13 frades, coisa à altura duma família nobre mais abastada. Mas isso não o diz ele, preocupado em convencer o leitor de que os frades arrábidos eram uns grosseiros oportunistas e o rei, um tonto. Mas uma coisa é a verdade e outra o seu falseamento.
Neste memorial tão atento a miudezas, como os dos nomes dos trabalhadores ou duma pedra muito grande que é transportada para as obras, não consta afinal o resultado: uma descrição da grandiosidade do convento construído, da sua imponente fachada, da sua magnífica basílica ou da sua biblioteca, por exemplo.
Um pormenor com que muito embirrei, entre outros, foi aquele de insinuar que as pessoas acreditavam que as imagens dos santos tinham ficado a conversar entre si na noite que precedeu a sua colocação nos respectivos nichos ou lugares. O autor, que na cerimónia de recepção do seu Prémio Nobel afirma que descobriu num popular analfabeto o homem mais sábio que conheceu, faz muito baixo conceito dos trabalhadores e populares de Mafra. Eles eram sem dúvida bem mais inteligentes do que o romancista insinua.
Eu conheço relativamente pouco sobre o P.e Bartolomeu de Gusmão. É certo que ele podia ter sido um cientista de sucesso, pois começou bem e tinha um projecto ousado: queria mesmo voar e talvez essa meta lhe não fosse inacessível. Mas não concretizou o seu sonho, e o Santo Ofício pouco ou nada há-de ter contribuído para isso, ao contrário do que na sua cegueira Saramago quer fazer crer. Mas chegar a dizer que ele descria de todo o Catolicismo, que recuara a judeu… parece-me demais.
As autoras do manual de que me sirvo são cá duma inteligência bem rara! Dizem elas do P.e Bartolomeu que este «cientista ignora os fanatismos religiosos da época e questiona todos os princípios dogmáticos da Igreja». E falam das «suas inabaláveis certezas científicas», dizem que a Inquisição o «acusa de bruxaria»; que «a sua obsessão de voar domina-o de tal forma, que não se inibe de integrar no seu projecto um casal não abençoado pela Igreja e de aceitar e usufruir das capacidades heréticas de Blimunda, que farão a passarola voar».
Que confusão aqui vai! De quem estarão elas a falar, do P.e Gusmão da História ou do P.e Gusmão de Saramago? Chama-se «cientista» de «inabaláveis certezas» quem quer voar na base de vontades reunidas dentro de esferas? Isso não sabe mesmo a pretensão de bruxaria?
Quem é que associou a si «um casal não abençoado pela Igreja», foi o P.e Bartolomeu da História ou o de Saramago? As capacidades de Blimunda são «heréticas»? Como assim? Não são antes como a lâmpada de Aladino, só magicas, isto é, nada?
Que primarismo por aqui anda, que primarismo enche as páginas deste memorial!
A Inquisição foi extinta há cerca de 180 anos. Porque será que ela apoquenta tanto Saramago, que tão pouco se doeu com o Gulag soviético, tão próximo dele e de nós, com os mortos do regime cubano, de tantos outros regimes que ele bem conheceu?
Como o rei vai nu!

Nota
- Na sua sanha de denegrir tudo o que respeita ao Convento, Saramago cuida de lembrar que na sua construção houve muitos feridos e mortos, sem dizer quantos. É provável que a média não fosse muito diferente da de outras obras europeias de grande envergadura. Aliás a construção civil ainda hoje é uma actividade com mortes frequentes. Pelos vistos, uma obra em que as mortes tiveram dimensão de hecatombe foi o Canal do Suez: 120.000!

28 abril 2007

OS PALÁCIOS D’«OS LUSÍADAS» (fim)

Os «régios paços» do Samorim

Agora temos um palácio real, não de fantasia. Camões dá-se conta da sua superioridade relativamente ao que havia na Europa:

Já chegam perto, e não [com] passos lentos,
Dos jardins odoríferos fermosos,
Que em si escondem os régios apousentos,
Altos de torres não, mas sumptuosos;
Edificam-se os nobres seus assentos
Por entre os arvoredos deleitosos:
Assi vivem os Reis daquela gente,
No campo e na cidade juntamente.

O palácio esconde-se numa enorme cerca, ao modo oriental. Por isso, como se diz nos dois versos finais, o Samorim atinge um anseio bem nosso contemporâneo, o de viver «no campo e na cidade juntamente», o de ter a liberdade, a comunhão com a natureza, a pureza de ares do campo e as comodidades urbanas.
Atente-se na informação sobre a inexistência das torres, ao contrário do que se passava nas cidades submarinas e na Europa.
Ao modo do que sucedera com as portas das cidades do fundo do oceano, aqui as portas da cerca ostentam painéis historiados que contam a história da Índia na sua ligação ao mundo ocidental pelas intervenções sucessivas de Baco, Semíramis e Alexandre Magno:

Pelos portais da cerca a sutileza
Se enxerga da Dedálea facultade,
Em figuras mostrando, por nobreza,
Da Índia a mais remota antiguidade.
Afiguradas vão com tal viveza
As histórias daquela antiga idade,
Que quem delas tiver notícia inteira,
Pela sombra conhece a verdadeira.

Estava um grande exército, que pisa
A terra Oriental que o Idaspe lava;
Rege-o um capitão de fronte lisa,
Que com frondentes tirsos pelejava
(Por ele edificada estava Nisa
Nas ribeiras do rio que manava),
Tão próprio que, se ali estiver Semele,
Dirá, por certo, que é seu filho aquele.

Mais avante, bebendo, seca o rio
Mui grande multidão da Assíria gente,
Sujeita a feminino senhorio
De ua tão bela como incontinente.
Ali tem, junto ao lado nunca frio,
Esculpido o feroz ginete ardente
Com quem teria o filho competência.
Amor nefando, bruta incontinência!

Daqui mais apartadas, tremulavam
As bandeiras de Grécia gloriosas
(Terceira Monarquia), e sojugavam
Até as águas Gangéticas undosas.
Dum capitão mancebo se guiavam,
De palmas rodeado valerosas,
Que já não de Filipo, mas, sem falta,
De progénie de Júpiter se exalta.

«Inclinai por um pouco a majestade»

Se para o rei de Melinde há «nobres paços», para o Samorim «régios apousentos», que haverá para D. Sebastião a quem o poeta trata tão majestaticamente? Preste-se atenção a estes versos:

Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: ...

Como Júpiter, como Neptuno ou Baco, o rei ocupa um lugar superior; é de lá, de um trono, que ele há-de estar atento à oferta do poeta. Mas estará ele só? Não estará antes num palácio com a sua corte? Ou estará numa espécie de anfiteatro, tendo a seu lado as Ninfas do Tejo, a quem antes o poeta se dirigira, e o Povo português o rei que governa e o poema exalta?

O Camões «humilde, baixo e rudo» é um sonhador. Com muita luz, com cristais e diamantes, ouro, pedrarias, riqueza sem limites, fabrica «na fantasia / fantásticas pinturas de alegria» (Canção X).
Estas antíteses de realidade e sonho, com os seus entusiasmos e as suas prostrações, não o afastam do maneirismo, confirmam-no como maneirista...

Sobre as imagens: a de cima representa Goa, não sei se no séc. XVI se XVII, com com as suas casas apalaçadas e remates pontiagudos, à europeia. Camões, pelo contrário, põe em evidência a diferença do palácio do Samorim: «altos de torres não, mas sumptuosos; (...) / assi vivem os Reis daquela gente, / No campo e na cidade juntamente.
A segunda imagem é o conhecido retrato de D. Sebastião por Cristóvão de Morais, de 1571.

26 abril 2007

OS PALÁCIOS D’«OS LUSÍADAS» (3)

Os «cristalinos paços singulares»

Dos paços de Neptuno vamos de imediato para «cristalinos paços singulares» que Vénus preparou na sua «alegre e namorada» (c. X, est. 143) «ínsula divina» (c. IX, est. 21) – que nunca é mencionada como Ilha dos Amores; Tétis, «a quem se humilha / todo o coro das Ninfas e obedece» (c. IX, est. 85) é naturalmente deusa ligada aos mares – e em concreto ao Atlântico, onde certamente possui o «Atlântico tesouro» donde há-de vir a baixela para o festim que vai dar.
Quis a Citereia que:

Ali, com mil refrescos e manjares,
Com vinhos odoríferos e rosas,
Em cristalinos paços singulares,
Fermosos leitos, e elas mais fermosas;
Enfim, com mil deleites não vulgares,
Os esperem as Ninfas amorosas,
D' amor feridas, pera lhe entregarem
Quanto delas os olhos cobiçarem.

É nesses «paços radiantes / E de metais ornados reluzentes» que vai ter lugar o finíssimo festim de Tétis, com óptimas baixelas, fantásticas iguarias e vinhos, conversas argutas, acompanhamento musical:

Quando as fermosas Ninfas, cos amantes
Pela mão, já conformes e contentes,
Subiam pera os paços radiantes
E de metais ornados reluzentes,
Mandados da Rainha, que abundantes
Mesas d' altos manjares excelentes
Lhe tinha aparelhados, que a fraqueza
Restaurem da cansada natureza.

Ali, em cadeiras ricas, cristalinas,
Se assentam dous e dous, amante e dama;
Noutras, à cabeceira, d' ouro finas,
Está co a bela Deusa o claro Gama.
De iguarias suaves e divinas,
A quem não chega a Egípcia antiga fama,
Se acumulam os pratos de fulvo ouro,
Trazidos lá do Atlântico tesouro.

Os vinhos odoríferos, que acima
Estão não só do Itálico Falerno
Mas da Ambrósia, que Jove tanto estima
Com todo o ajuntamento sempiterno,
Nos vasos, onde em vão trabalha a lima,
Crespas escumas erguem, que no interno
Coração movem súbita alegria,
Saltando co a mistura d' água fria.

Mil práticas alegres se tocavam;
Risos doces, sutis e argutos ditos,
Que entre um e outro manjar se alevantavam,
Despertando os alegres apetitos;
Músicos instrumentos não faltavam
(Quais, no profundo Reino, os nus espritos
Fizeram descansar da eterna pena)
Cua voz dua angélica Sirena.

Compensa ir daqui dar uma olhadela à Máquina do Mundo, que continua este espaço «divino» de maravilha, pois parece que os Deuses marinhos, que às portas da sua cidade já tinham representações que lembravam altos temas do saber humano e divino, são mais dados a coisas de cultura que os olímpicos. Vejam-se as estrofes iniciais, onde aparecem esmeraldas e rubis e um globo de luz e transparência representa o Universo:

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêm no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,
Nunca s' ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquetipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, pera que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfícia tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende.

A Máquina do Mundo é o espectáculo único, divino, presenciado por "olhos corporais".
Nas palavras de A. J. Saraiva, "é um dos supremos sucessos de Camões", "as esferas são transparentes, luminosas, vêem-se todas ao mesmo tempo com igual nitidez; movem-se, e o movimento é perceptível, embora a superfície visível seja sempre igual. Conseguir traduzir isto por meio da "pintura que fala" é atingir um dos cumes da literatura universal."
Esta «pintura que fala» (c. VIII, est. 41) ou descrição, opõe-se à «muda poesia» ou pintura propriamente dita, a que o poeta se refere quando escreve no canto VII est. 76:

...................................mas o intento
Mostrava sempre ter nos singulares
Feitos dos homens que, em retrato breve,
A muda poesia ali descreve.

Sobre a imgem: é de Francisco da Holanda, contemporâneo de Luís de Camões. Esta imagem «futurista» também representa a máquina do mundo.

24 abril 2007

OS PALÁCIOS D'«OS LUSÍADAS» (2)

A «casa etérea do Olimpo omnipotente»

A «casa etérea do Olimpo omnipotente» ou «luzente, / estelífero Pólo e claro assento» deverá ser como que o palácio original, o pai de todos os palácios. Ao chamar-lhe etérea, o poeta localiza-o na quinta-essência, no éter. Mas não se alonga a descrevê-la.
Observe-se que um palácio n’Os Lusíadas não é automaticamente um espaço isolado, à parte. Aqui, antes de se chegar, já se encontra um mundo de maravilha: os Deuses quando se dirigem para o Olimpo pisam «o cristalino Céu fermoso» e «vêm pela Via Láctea juntamente». Mas é quando se reúnem que essa «casa etérea» brilha:

Estava o Padre ali, sublime e dino,
que vibra os feros raios de Vulcano,
Num assento de estrelas cristalino,
Com gesto alto, severo e soberano;
Do rosto respirava um ar divino,
Que divino tornara um corpo humano;
Com ua coroa e ceptro rutilante,
De outra pedra mais clara que diamante.

Júpiter apresenta-se de facto como uma figura imponente, no seu «assento de estrelas cristalino». Quanto aos deuses convocados, ocupam «luzentes assentos, marchetados / de ouro e de perlas»:

Em luzentes assentos, marchetados
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os outros Deuses, todos assentados
Como a Razão e a Ordem concertavam.

É um espaço refulgente, verdadeiramente olímpico.
(Porque será que o consílio acaba tão mal, em inqualificável «tumulto»?)


Os «paços de Neptuno»

Não fazendo caso de outros paços sobre que o épico pouquíssima informação dá, passemos já para os de Neptuno e para a cidade submarina onde ficavam.
Entramos num mundo fantástico. As areias são «de prata fina»; há «torres altas» «da transparente massa cristalina»: tudo parece cristal e diamante:

No mais interno fundo das profundas
Cavernas altas, onde o mar se esconde,
Lá donde as ondas saem furibundas
Quando às iras do vento o mar responde,
Neptuno mora e moram as jocundas
Nereidas e outros Deuses do mar, onde
As águas campo deixam às cidades
Que habitam estas húmidas Deidades.

Descobre o fundo nunca descoberto
As areias ali de prata fina;
Torres altas se vêem, no campo aberto,
Da transparente massa cristalina;
Quanto se chegam mais os olhos perto
Tanto menos a vista determina
Se é cristal o que vê, se diamante,
Que assi se mostra claro e radiante.

Repare-se nas esculturas das «portas d' ouro fino» que dão acesso à cidade, onde se evocam o caos, os quatro elementos, a Guerra dos Gigantes «e a primeira / de Minerva pacífica ouliveira»:

As portas d' ouro fino, e marchetadas
Do rico aljôfar que nas conchas nace,
De escultura fermosa estão lavradas,
Na qual do irado Baco a vista pace;
E vê primeiro, em cores variadas,
Do velho Caos a tão confusa face;
Vêm-se os quatro Elementos trasladados,
Em diversos ofícios ocupados.

Ali, sublime, o Fogo estava em cima,
Que em nenhua matéria se sustinha;
Daqui as cousas vivas sempre anima,
Despois que Prometeu furtado o tinha.
Logo após ele, leve se sublima
O invisíbil Ar, que mais asinha
Tomou lugar e, nem por quente ou frio,
Algum deixa no mundo estar vazio.

Estava a Terra em montes, revestida
De verdes ervas e árvores floridas,
Dando pasto diverso e dando vida
Às alimárias nela produzidas.
A clara forma ali estava esculpida
Das Águas, entre a terra desparzidas,
De pescados criando vários modos,
Com seu humor mantendo os corpos todos.

Noutra parte, esculpida estava a guerra
Que tiveram os Deuses cos Gigantes;
Está Tifeu debaixo da alta serra
De Etna, que as flamas lança crepitantes.
Esculpido se vê, ferindo a Terra,
Neptuno, quando as gentes, ignorantes,
Dele o cavalo houveram, e a primeira
De Minerva pacífica ouliveira.

Veja-se agora o ajuntamento divino, já «na grande sala, nobre e divinal» do palácio, quando se vai iniciar o consílio:

Já finalmente todos assentados
Na grande sala, nobre e divinal,
As Deusas em riquíssimos estrados,
Os Deuses em cadeiras de cristal,
Foram todos do Padre agasalhados,
Que co Tebano tinha assento igual;
De fumos enche a casa a rica massa
Que no mar nace e Arábia em cheiro passa.

Decorre então o consílio, que também há-de degenerar em tumulto, como o do Olimpo, e onde Baco será bem sucedido, conseguindo aliados activos contra os Portugueses.

Sobre a imagem: ela representa uma porta italiana com altos-relevos, como as do palácio de Neptuno, que «de escultura fermosa estão lavradas».

23 abril 2007

OS PALÁCIOS D’«OS LUSÍADAS» (1)

Perto do final da canção Vinde cá, meu tão certo secretário, escreve Camões:

Já de mal que me venha não me arredo,
nem bem que me faleça já pretendo,
que para mim não val astúcia humana;
de força soberana
da Providência, enfim, divina pendo.
Isto que cuido e vejo, às vezes tomo
para consolação de tantos danos.
Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como,
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

Os Lusíadas, que têm um lastro de lágrimas, globalmente enquadram-se certamente nas fantásticas pinturas de alegria de evasão que o poeta aqui diz fabricar. Os palácios que neles se mencionam ou descrevem são quase sempre sonho, fantasia. É sobre estas fantásticas pinturas que pretendo começar a dizer hoje algumas palavras. Para elas também pediu ele às Tágides o «estilo grandíloco e corrente», oposto ao estilo da Lírica.
Comecemos por nos perguntar que palácios é que Camões conheceria. Ele foi poeta palaciano, frequentou a corte. Conheceria o palácio da Ribeira, o de Sintra, o de Almeirim, o de Évora... Cá em Portugal.
Estes palácios podiam ser de cidade, integrados na malha urbana, ou do campo, isolados. Características eram as suas torres pontiagudas, certamente de imitação estrangeira. Mas não vamos agora investigar isso.

Se se pedisse a um dos leitores escolares d’Os Lusíadas (leitores obrigados) que indicasse qualquer coisa que no poema o tivesse realmente entusiasmado, não imagino que resposta se obteria. Este tema dos palácios quer-me parecer que se poderia tornar facilmente num ponto de partida motivador.
Aos palácios chama o poeta paços, ainda à maneira antiga que era a sua. De modo explícito, menciona seis: os «nobres paços» do rei de Melinde (c. II, est. 91), os «paços sublimados» de Afonso IV, pai da «fermosíssima Maria» (c. III, est. 102), os «paços de Neptuno» (c. VII, est. 14), os «paços» da corte londrina onde decorre o combate dos Doze de Inglaterra, os «régios apousentos» do Samorim (noutra ocasião mencionados como «régios paços») (c. VII, est. 14), os «cristalinos paços singulares» que Vénus prepara na Ilha dos Amores (c. IX, est. 41) e que depois vão ser descritos como «paços radiantes / E de metais ornados reluzentes» (c. X, est. 2).
Mas há mais. A «casa etérea do Olimpo omnipotente» (c. I est. 42) onde decorre o consílio dos Deuses e que no discurso de Júpiter é chamada «luzente, / estelífero Pólo e claro Assento» não será palácio? E como não falar de palácio – nunca referido sequer como casa – a respeito do lugar onde se encontra o «poderoso Rei, cujo alto Império / o Sol, logo em nascendo, vê primeiro, / vê-o também no meio do Hemisfério, / e quando dece o deixa derradeiro» (c. I, est. 8), isto é, da residência de D. Sebastião a quem o épico vai apresentar o seu canto?

Sobre a imagem:
ela representa o Palácio dos Duques de Bragança, em Barcelos, no século de Camões.

20 abril 2007

GOSTAVAS QUE TE FIZESSEM O MESMO?

Continuo a estudar o Memorial do Convento. Mas fico com a impressão de que os seus estudiosos – muitas estudiosas – não apreenderam a lição do autor: fazem dele um herói, quando ele é um destruidor de heróis.
É conhecida aquela anedota infantil em que uma formiga, que tinha sido calcada por um elefante, pergunta muito ofendida: «Gostavas que te fizessem o mesmo?»
Não seria legítimo demolir também a imagem de Saramago, em vez de o mitificar? Mostrar ao menos que o Memorial do Convento assenta principalmente na má vontade contra a Igreja?
Quanto à megalomania subjacente à construção do Convento, convém ter em conta que ele é produto do mesmo absolutismo que ergueu o Palácio de Versalhes, o Escorial e o Ermitage, etc.
O pessimismo e o sarcasmo de Saramago parecem sugerir o abastardamento de toda a sociedade civil e da vida de todos os conventos e mosteiros e do clero não regular naquelas décadas do séc. XVIII. Mas jamais algum historiador pintou assim aquele período. Os documentos não permitem a afirmação de tal enormidade.
Saramago não deixou de mencionar a Inquisição, o que é historicamente aceitável, mesmo que um pouco surpreendente num autor que esteve ao lado de regimes contemporâneos tão inquisitoriais como é bem conhecido e que nunca denunciou (a não ser há alguns anos o regime cubano, que em cerca de 50 anos matou lá para 17.000 mil pessoas)[1].
Durante os três séculos da sua existência, foram mortas à conta da Inquisição portuguesa (a palavra final de morte era dada pelo Rei) um pouco mais que 1.500 pessoas. Importunadas pelo tribunal, foram lá para 32.000 (como consta dos processos). Números assustadores, mas bem pouco significativos se os comparamos com os de regimes recentes (segundo o livro Mao: a História Desconhecida, o fundador da República Popular da China, para obter a bomba atómica, aceitava deixar morrer metade da população do país…).
Durante a vigência do Santo Ofício, o poder civil enforcou muitas pessoas; ainda hoje se conserva memória dos lugares onde então se erguia a forca. Não sei se alguém já tentou fazer as contas, mas sou levado a crer que terão sido mais numerosas as vítimas dos tribunais civis que as da Inquisição (fica a impressão de que não havia concelho que não tivesse possuído a sua forca).
Por muito louco que tenha sido o projecto de D. João V sobre o Convento, por muito desumanas que tenham sido as condições de trabalho ao construí-lo, a verdade é que ele está lá e é duma grandiosidade e duma beleza que impressionam. Isso não é dito no romance que afirma ser o seu memorial.

[1] É conhecido um episódio ocorrido em Agosto de 1975 em que Saramago saneia 24 colegas seus do Diário de Notícias, ao jeito inquisitorial.

19 abril 2007

SEGUNDO ANIVERSÁRIO DA ELEIÇÃO DE BENTO XVI

O Cardeal Tarcisio Bertone, Secretário de Estado do Vaticano, faz um balanço muito positivo do actual pontificado e considera que a China e a América Latina serão as prioridades de Bento XVI no seu terceiro ano como Papa.
Em entrevista à RAI, este responsável assinalou que “Ratzinger imprimiu um estilo que dá continuamente as razões da sua esperança. É um Papa rigoroso e claro, com uma grande capacidade de escuta e capaz de dizer a palavra certa a cada um, como se fosse um seu amigo de sempre”.
O Cardeal Bertone diz mesmo que "se todos os pregadores e catequistas imitassem Bento XVI no anúncio cheio de alegria, convicção e entusiasmo, creio que aumentaria no mundo a curiosidade e a sede de conhecimento, mas também a alegria de ser cristão”. Agência Ecclesia
Como encaixar aqui o tendencioso, o malévolo prognóstico de Saramago de há dois anos quando sentenciou do alto do seu Prémio Nobel: «A Inquisição subiu ao poder»?

17 abril 2007

HOUVE MUITOS VALENTES ANTES DE AGAMEMNÃO

António José Saraiva escreveu uma vez que A. Cunhal, para o seu partido, era como o Papa: ele falava e logo os seus seguidores o repetiam reverentemente. Parece que agora a comparação vale para J. Saramago. Ele diz e imediatamente, sem cuidados críticos, muitos o repetem com devoção.
Mas, como «houve muitos valentes antes de Agamemnão»[1] (Horácio), também houve muitos sábios antes de Saramago. A única atitude respeitadora face a ele – tão altivo e tão afirmativo – é a de exigência crítica. É essa que pretendo agora que vou começar a acompanhar os meus alunos na leitura de o Memorial do Convento.
Vejam-se estas frases, escritas por José Fernandes Pereira, a respeito do mesmo convento, na História da Arte Portuguesa, ed. do Círculo Leitores, 1995, vol. III, págs. 61-62:

No primeiro documento oficial, alvará de Dezembro de 1711, D. João V manda construir «por esmola», em Mafra, um convento dedicado a Santo António que seria entregue à província da Arrábida que disponibilizaria treze religiosos para nele assistirem. (…) os estatutos dos Arrábidos eram muito claros quanto ao modo de aceitar, por esmola, a doação de novos conventos, e também quanto ao programa cons­trutivo: «os Conventos, que se houvessem de aceitar, ordenava que fossem em tudo, e de tudo muito pobres, os materiais de adobes, e as madeiras tos­cas, excepto as da Igreja, e Sacristia, na qual não haveria ornamento de tela, ou seda, senão de lã...». Os Arrábidos foram sempre extremamente zelosos no cumprimento destas disposições que, como se verá, de modo algum fo­ram respeitadas em Mafra.
(…) Por tradição e pelos estatutos, os Arrábidos aceitavam, por esmola, novos conventos desde que fossem os frades a gerir a sua construção que, nenhum caso, poderia fugir de uma tipologia e de um carácter de sim­plicidade e pequenez há muito tipificado. Ora o alvará de 1714 revela sibilinamente que a obra a erguer em Mafra seria régia, controlada desde Lisboa pelo rei e que aos frades competia apenas aceitar o presente, ainda que enve­nenado.
Fá-lo-ão com pouca convicção e após parecer jurídico do arcipreste da Patriarcal de Lisboa, expresso em 1730, e segundo o qual os Arrábidos po­diam sem escrúpulo aceitar obra tão luxuosa para a qual a «Real Magnifi­cência» não tinha sequer que lhes solicitar consentimento.

[1] Vixere fortes ante Agamemnona multi.

16 abril 2007

AS BEM-AVENTURANÇAS SEGUNDO S. LUCAS

Jesus falou frequentemente à multidão. O trecho seguinte reflecte esse tipo de comunicação, pois conserva marcas oratórias bastante nítidas. É a versão das Bem-aventuranças que vem no Evangelho de S. Lucas. Vejamo-la:

Felizes vós, os pobres, porque vosso é o reino de Deus!
Felizes vós, os que agora tendes fome, porque sereis saciados!
Felizes vós, os que agora chorais, porque haveis de rir!
Felizes sereis quando os homens vos odiarem, quando vos expulsarem, vos insultarem e rejeitarem o vosso nome como infame, por causa do Filho do Homem!
Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu; era precisamente assim que os pais deles tratavam os profetas!
Mas ai de vós, os ricos, porque recebestes a vossa consolação!
Ai de vós, os que agora estais fartos, porque haveis de ter fome!
Ai de vós, os que agora rides, porque vos gemereis e chorareis!
Ai de vós, quando todos disserem bem de vós! Era precisamente assim que os pais deles tratavam os falsos profetas!

Lc 6, 20-26

A primeira observação é esta: ao contrário de S. Mateus, cuja proclamação das Bem-aventuranças é um bloco homogéneo de oito declarações pela positiva, «eufóricas», aqui temos dois blocos: um de quatro bem-aventuranças, outro de outras tantas declarações de infelicidade, imprecações – mal-aventuranças, diríamos.
E trata-se de blocos antitéticos: aos pobres opõem-se os ricos; aos que têm fome contrapõem-se os que «estais fartos», etc. Aliás lá está a habitual conjunção adversativa «mas» a fazer a separação das águas...
Além da antítese, o texto dá grande relevo à anáfora e ao paralelismo. A reunião dos três processos – antítese, anáfora e paralelismo – alerta-nos de imediato para o efeito oratório da proclamação. Indubitavelmente, com esta formulação ela ganha solenidade.
Por outro lado, os mesmos processos lembram-nos textos antigos, como salmos e literatura sapiencial da tradição vétero-testamentária.
Repare-se também no uso da segunda pessoa verbal, da interjeição...
Mas há mais dois processos a relevar. Comecemos pelo paradoxo. Realmente tem muito de paradoxal declarar felizes os pobres ou os que têm fome. Quem de nós desejaria essa felicidade?
O paradoxo é aliás bastante comum em S. Lucas e indica uma orientação importante do terceiro Evangelho: o radicalismo da força transformadora da sua mensagem, que às vezes tem ares modernos de esquerda.
Trata-se de uma orientação muito fácil de ilustrar: no presépio, Jesus não tem a visita de sábios nem de piedosos, mas de pastores, considerados marginais, por não poderem frequentar a sinagoga. Foram esses que Jesus Menino quis como primeira companhia não familiar. Ao filho pródigo que, no seu regresso, se contentava com ser aceite como criado pelo pai, este dá-lhe uma festa (que escandaliza o irmão mais velho). Na Cruz, a um dos ladrões bastam algumas palavras de atenção para com Jesus para que ele lhe garanta que «hoje mesmo» estará consigo no Paraíso – sem passar longo período no Purgatório… –, etc.
Há muita coisa desconcertante, inesperada neste evangelho.
Atentemos ainda num outro processo, especificamente bíblico. Trata-se do que cremos chamar-se a «viragem ao passivo».
«Felizes vós, que agora tendes fome, porque sereis saciados!» Saciados por quem?
O judeu piedoso, por respeito, evitava pronunciar o nome de Deus: Ele só deveria ocorrer em contexto de muita veneração. E encontravam-se estratagemas para conseguir este objectivo. Certamente um dos mais conhecidos será o que aqui se verifica e que consiste em transpor o verbo para a passiva, sem mencionar o agente, que era identificável pelo contexto. A parte final da frase podíamos traduzi-la assim, na nossa linguagem menos respeitadora do segundo mandamento: «porque Deus vos consolará».

13 abril 2007

«FELIZMENTE HÁ LUAR!»

Esta obra dramática foi publicada em 1961, em pleno período salazarista e no ano em que os movimentos independentistas iniciaram a luta armada nos territórios ultramarinos, pouco tempo após o afastamento de Humberto Delgado.
A sua acção tem uma larga base histórica e reporta-se a uma pouco clara tentativa abortada de conjura contra o poder absolutista que em 1817 dominava o país na ausência do Rei, que se encontrava no Brasil desde 1807.
O pesadelo napoleónico que atormentara a Europa baqueara três anos antes em Waterloo; as monarquias europeias respiravam de alívio e afirmavam o absolutismo.
O herói da peça militara nas fileiras do exército imperial francês.
Como podia ele apesar disso tornar-se o porta-bandeira duma sublevação revolucionária?
Por muitas contradições que a experiência da Revolução Francesa encerrasse, com os seus momentos de terror e a aventura imperialista de Napoleão, a verdade é que um regime absolutista se tornava também facilmente odioso. O nosso atraso era gritante e Portugal vivia uma situação política e económica que não era de molde a deixar ninguém muito sossegado.
Felizmente há luar! é uma obra de influência brechtiana, de teatro épico, de pensamento esquerdista. Na perspectiva do autor, o momento político que se vivia em 1817 teria um paralelismo muito próximo com o de 1961: as prepotências dos governadores mostravam como em espelho as do regime contemporâneo; nas duas épocas havia quem enfrentava o poder.
Neste sentido, a obra é um panfleto anti-regime. Com uma clareza possivelmente excessiva, simplista, ela contém dois grupos de pessoas: o dos bons, vistos como muito bons; e o dos maus, vistos como incorrigível e agressivamente maus.
Deve-se também notar que durante o primeiro acto não há propriamente acção; é um acto feito de conversa, sem conflito, sem confronto. O segundo é mais vivo, conflituoso, mesmo que o inconformismo militante da sua protagonista, Matilde, seja historicamente pouco verosímil; as grandes tiradas quase oratórias com que afronta o Principal Sousa assentam numas ousadias teológicas às vezes pouco consequentes e dificilmente imagináveis numa mulher pouco culta do princípio daquele século. Fr. Diogo quando diz que «se há santos, Gomes Freire é um deles», esquece-se que aquele general aventureiro era mação e que portanto não se confessava; mais, que era um inimigo declarado da Igreja (Igreja que sabia o que a chegada do Liberalismo poderia significar para ela, como depois se verificou).
É preciso mesmo querer dizer bem da obra para não notar estas e outras incoerências.
António José Saraiva fala de escritores, «ditos empenhados», que «se alistavam nesta escola (neo-realista), que era facilmente acessível a um homem mediano que quisesse resgatar-se da sua condição de “burguês” ou de letrado, pelas suas “boas obras”, mesmo sem a graça do mérito gratuito, ou seja, da vocação artística». Parecer ser o caso de Sttau Monteiro, filho de ministro salazarista e corredor de Fórmula 2.
Sobre Freire de Andrade, consulte: http://www.arqnet.pt/exercito/freire.html
Quanto às excelências do teatro brechtiano, é de perguntar em que medida contribuiu ele para libertar os países da Cortina de Ferro do jugo soviético.

Sobre a imagem: é um fragmento dum inventário de 1800 onde foi posteriormente dada baixa das peças que foram para o Junot: Genô na escrita do anotador. Também se diria que foram para o Janota, que é mais ou menos a leitura inglesa do nome Junot, ou «para o Maneta».