31 março 2007

O JEJUM DA BEATA ALEXANDRINA NA IMPRENSA DO SEU TEMPO

Um dia, numa página da Internet, eu fui humilhado por causa dumas afirmações que fiz sobre a Beata Alexandrina. Recordo-me que então se falou do jejum. Embora eu soubesse que estava a dizer a verdade, não dispunha na altura de modo de provar irrefutavelmente o que afirmava. Hoje é diferente.
O seu jejum é um desafio lançado à nossa mentalidade que valoriza o facto objectivo e inapelável; mas é extraordinário e verdadeiro.
O nome da Alexandrina aparece na imprensa pela primeira vez em 1941, pela mão do P.e José Alves Terças, com a reportagem sobre «A Martirizada do Calvário».
Em meados de 1944, foi posto nas bocas do mundo quando foi divulgada a infeliz nota dimanada da Cúria bracarense que negava que houvesse alguma coisa de extraordinário, isto é, de sobrenatural, no que àquela «martirizada» dizia respeito.
Em Janeiro de 1947, uma alusão desprimorosa à Alexandrina num artigo do P.e José Agostinho Veloso saído na Brotéria, com o título de «Mística e Jornalismo», levou o Dr. Azevedo a ripostar-lhe n’O Comércio do Porto, em Fevereiro, sob o título de «Resposta a uma frase da revista “Brotéria”».

Uma reportagem do Jornal de Notícias

No final do ano, em 4 de Novembro, o Jornal do Notícias faz sair uma reportagem com este título bem sugestivo: «Uma mulher que não come nem bebe há seis anos e vive perfeitamente». Sem assinatura, o trabalho é provavelmente da responsabilidade do director do diário; integra-o uma breve entrevista à Alexandrina e fotografia do exterior da sua casa. O autor adopta uma atitude respeitosa, embora deixe transparecer algumas reservas, por cautela.
Veja-se este belo retrato que faz da Doente do Calvário:

A Alexandrina, de sorriso aberto, espera talvez que lhe dirijamos a palavra. O rosto é sobre o comprido, a boca rasgada, a pele branca, um tudo-nada rosada. Seus olhos são pretos, duma luz brilhante, e os cabelos, também negros, emolduram-lhe a fisionomia numa expressão de simpatia desafectada; tem 43 anos, mas não figura mais que 33.

E agora a entrevista:

- Disseram-nos que não se alimenta.
- É verdade. Deixei de comer e de beber há seis anos.
- Mas não tem apetite?
- Estou sempre enfartada.
- Repugnam-lhe os alimentos?
- Não. Por vezes sinto até saudades deles.
- Então porque não aproveita essas ocasiões para tentar uma alimentação ligeira?
- Não posso. Sinto-me bem.
- Mesmo bem?
- É como quem diz: Passo bem, passando mal.
- Há que tempo está doente?
- Trinta anos. Só há 13 é que tive a primeira grande crise. Dessa vez, torturada pelo vómito, sofri um jejum de 17 dias. Vieram depois outras crises, menos prolongadas. Quando elas passavam, voltava a comer. Por fim, quase só o comia fruta. Mas há seis anos veio a crise definitiva. Então deixei os alimentos por completo.
- O seu aspecto não deixa perceber isso.
- Cada um sabe de si. Compreendo que a minha doença tem despertado curiosidade e murmurações. Aflige-me que tal suceda: desejaria que não se preocupassem comigo. De mim já se tem falado demais. Se estivesse no meu poder, metia-me num buraco.
A Alexandrina fala porém sem aborrecimentos – fala naturalmente, dizendo o que sente. Essa simplicidade é transparente. Sofre, por certo, mas resiste com alegria, couraçada por uma decidida força espiritual, a sua fé.
Insistimos no interrogatório:
- E os médicos?
- Os médicos – não dizem nada. Todas as semanas vem aqui o Sr. Dr. Azevedo, mas não me receita remédios. Há cinco anos estive em observação numa casa e saúde do Porto. Foram 40 dias de vigilância apertada, rigorosa. Mas regressei – daí como havia entrado para lá.
Passava meia hora. A enferma estava visivelmente fatigada. Despedimo-nos, fazendo votos pelas suas melhoras. Sorrindo, ela agradeceu-nos.

Passemos à conclusão:

A despeito da normal perda de peso, (a Alexandrina) conserva uma frescura e resistência impressionantes. Finalmente, oferece o aspecto dum caso que a Medicina sabe em grande parte explicar, mas não deixa contudo de patentear alguns pormenores que, pela sua importância de ordem biológica, tais a duração da abstinência de líquidos e anúria, impõem uma suspensão, aguardando que uma explicação clara faça a necessária luz.
A ciência não é definitiva, como se vê. O que é incontroverso é o facto da doente viver há anos – sem levar à boca nem alimentos nem bebidas.

Na semana seguinte, o Dr. Dias de Azevedo publicou, no mesmo jornal e sob o mesmo título, um longo esclarecimento à mencionada reportagem.

Nas bocas do mundo

Se aos amigos mais chegados da Alexandrina não restavam dúvidas sobre o seu jejum, agora ouviam a palavra pública do seu médico assistente, garantida pela competência do conceituado director do Refúgio da Paralisia Infantil, Dr. Gomes de Araújo.
O ano de 1953 foi fértil em notícias onde o tema do jejum quase sempre aparece: saíram no Jornal de Notícias, por várias vezes, n’O Gaiato (desfavorável), no Diário do Norte (pelo menos quatro vezes, a favor) e no Jornal do Médico, onde um artigo do vilacondense Dr. Joaquim Pacheco Neves desencadeia um polémica com o Dr. Dias de Azevedo.

27 março 2007

E SE O OUTRO TIVESSE FICADO EM PRIMEIRO LUGAR?

Para este resultado, para a vitória de Salazar, arranjaram-se as explicações mais convenientes. Mas, e se tivesse sido o outro a ocupar o primeiro lugar? Ele, o discípulo de Lenine e de Estaline? Ele, o amigo de Fidel Castro e tantos outros grandes ditadores?
Eu continuo a pensar que a Esquerda só vê o que lhe convém.
Até já se culpa a educação! Mas, se os programas oficiais já exaltam tanto as excelências deste fantástico regime em que vivemos, que mais se lhe há-de acrescentar?
Eu sugeria que se acrescentassem: a relação honesta dos desmandos da Primeira República, o modo como ela tratou a Igreja e o fenómeno nascente de Fátima, as realizações do Estado Novo, o seguidismo esquerdista dos seus opositores…
Que se acrescentasse também como o pós-25 de Abril esteve a caminho de descambar numa totalitarismo mais duro que o de Salazar; que se culpasse quem disso foi responsável (em vez de querer criar pseudo-heróis); que se identificassem as grandes debilidades do actual regime, sem descarregar as culpas delas para o vizinho; que na disciplina que lecciono – o Português – se exigisse um maior pluralismo quer nos manuais quer nas propostas de leitura vindas do Ministério, etc., etc.
Veja-se se muitas das palavras que em 19 de Abril de 2003 o pensador brasileiro Olavo de Carvalho escreveu sobre Saramago em O Globo (http://www.olavodecarvalho.org/semana/030419globo.htm) não assentariam bem ao perdedor, com os indispensáveis acertos:

O sr. José Saramago, que é quase tão inteligente quanto parece, levou quatro décadas para descobrir que Fidel Castro não presta. O sr. Luiz Inácio, que não parece nada inteligente e o é tanto quanto parece, talvez demore mais alguns meses, caso não se veja nas mesmas circunstâncias que levaram o escritor português a essa deprimente conclusão. Aconteceu que, após ter sonhado todo esse tempo com o ditador cubano, fazendo dele o herói de não sei quantas epopéias libertárias, uma bela manhã o romancista despertou com a estranha sensação de que o limite de sua amável complacência para com o homicídio em massa tinha sido ultrapassado. Fuzilar dezessete mil pessoas estava bem, era decente, não feria a moral nem os bons costumes. Mas dezessete mil e três, faça-me um favor! Era de tirar o sono de qualquer dorminhoco. Chocado com a tripla excrescência, Saramago enfim acordou, e já acordou brabo, acusando Fidel de ter estragado os seus sonhos.
É verdade que em épocas anteriores o sono do Nobel português tinha resistido incólume a doses bem maiores de truculências. Todo o mundo lusófono o ouviu roncando enquanto Stalin matava vinte milhões de russos, Mao sessenta milhões de chineses, Pol-Pot dois milhões de cambojanos. Mas esse aparente paradoxo tem explicação fisiológica: os jovens dormem melhor que os velhos, e o sr. Saramago, embora ninguém jamais suspeitasse disso, foi jovem antes de chegar à idade senil.

Sobre a imagem: Capelinha das Aparições de Fátima dinamitada (http://www.santuario-fatima.pt/portal/arquivo.php?item=1525) durante a Primeira República (06-03-1922).

26 março 2007

INDEFINITIVO

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Álvaro de Campos


Indefinitivo não é palavra dicionarizada, mas é gramaticalmente bem formada: como há definido e definitivo, ao lado de indefinido também podia haver indefinitivo.
O que quero dizer é que o que a seguir vou escrever sobre a Mensagem de Fernando Pessoa precisa de mais meditação e fundamentação: não é definitivo.
Quando o autor afirma – e ele não é peco a afirmar – que «o mito é o nada que é tudo», provavelmente estará muito próximo dum pensamento como o que Eça de Queirós expõe na Relíquia sobre a ressurreição de Jesus Cristo. Se eu me lembro bem do que lá diz, e certamente lembro-me aproximadamente, ele pretende fazer crer que a afirmação da ressurreição assenta só na histeria de Maria Madalena, que não tem base nenhuma de realidade, e que, apesar disso, com ela se criou uma civilização de 2000 anos.
É claro que isto é falso. Mas adiante, que não vem muito para o caso esmiuçar aqui essa falsidade.
Quando Pessoa quer que se divulgue intensamente o mito do sebastianismo, o que de facto ele pretenderá é fundar a Religião do Encoberto.
Mas tudo isto começa mal: quem lhe revelou o «sinal» (Benedictus Dominus Deus noster qui dedit nobis signum) que devia dar garantia a toda a sua profecia de novo Bandarra? Sabendo ele que D. Sebastião, o seu «messias», nunca vai voltar, que descaramento é o dele ao tecer toda a urdidura do seu texto? Que história do futuro é esta que quer contar? Que clavis prophetarum lhe abriu as portas visionárias?
No Evangelho de S. João, Jesus diz uma vez: «Ainda não chegou a minha hora». Mas havia de chegar: a hora da consumação da redenção, a hora em que brilhou o amor sem limites de Deus, quando o Filho Se entregou por aqueles que O crucificavam.
Na Mensagem, que tem muito de blasfemo, proclama o poeta no poema Nevoeiro: «É hora!» Mas não era, porque não aconteceu nada
Diz Pessoa que o Império Português do séc. XVI era como «ante-arremedo» do Quinto Império que havia de vir. Se calhar, já o P.e António Vieira, que tinha costela de louco, dissera coisas semelhantes. Mas já eram falsas na altura e agora ainda o eram mais claramente.
Este modo de falar (o autêntico, não a sua deturpação), se me não engano, tem origem em S. Paulo: é ele que ensina que certos acontecimentos vétero-testamentários eram figura do que havia de acontecer com Cristo. Por exemplo, a passagem do Mar Vermelho, com a consequente libertação do povo hebreu, é figura da redenção; o sacrifício (não consumado) de Isaac aponta para o de Cristo, etc. Parece que nasce daqui o «ante-arremedo» pessoano.
O Quinto Império seria o «Novo Céu e a Nova Terra» de que fala o Apocalipse
Aonde nós chegámos!

«Ó Verdade, esquece-te de mim!», escreveu Álvaro de Campos no Demogorgon.
É caso para corrigir:
Ó Verdade, lembra-te de nós!

24 março 2007

MANUEL DE SÁ

Aqui onde eu vivo, houve no século XVI várias pessoas importantes; uma delas foi um jesuíta, de nome Manuel de Sá. Eu coloquei uma breve biografia dele na Wikipédia (http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_de_S%C3%A1), mas vou acrescentar aqui algo mais.
Manuel de Sá nasceu em 1528 (é portanto três, quatro anos mais novo que Camões), e morreu em 1596, nos arredores de Milão, Itália (Camões tinha morrido dezasseis anos antes). Entrou para os Jesuítas com dezassete anos. A Companhia de Jesus estava então no seu explosivo início; tinha sido fundada em 1540, mas já reuniria em 1545 centenas de membros.
Depois de estudar em Coimbra, foi Manuel de Sá para a Espanha, para a província de Valência, mais em concreto, para Gandia. Com dezanove anos (1547), começa a ensinar Filosofia na Universidade local, que fora fundação do Duque de Gandia – duque que virá a ser S. Francisco de Borja. Manuel de Sá foi professor particular deste Santo e acompanhou-o a Roma em 1550-51.
Regressado a Espanha, passou este vilacondense para Alcalá de Henares, para uma universidade que havia de ser conceituadíssima e ficava nas proximidades de Madrid (é conhecida também como Universidade Complutense).
«Chamado por Santo Inácio de Loiola a Roma, aí começou a sua brilhante carreira de professor de Teologia e de Sagrada Escritura no Colégio Romano, onde foi também prefeito dos estudos» (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira).
«Foi um dos correctores designados por S. Pio V a fim de preparar uma revisão oficial da Vulgata (a tradução latina da Bíblia por S. Jerónimo), e no pontificado de Gregório III fez parte da comissão da qual saiu a edição dos Setenta por Sisto V» (ibidem).
Estava-se no período da Contra-Reforma e do Concílio de Trento; havia uma necessidade acrescida de ser científico. Chama-se Vulgata à tradução da Bíblia para latim feita por S. Jerónimo no séc. IV. Os Setenta são uma tradução do Antigo Testamento para grego realizada ainda antes da nossa era.
Manuel de Sá escreveu em latim as suas obras; as citações que dele faço, traduzi-as. No início das Notationes, explana o autor a utilidade do seu livro:

1. Explicam, de um modo muito breve, toda a Escritura, segundo o sentido literal; e, que eu saiba, tal nunca tinha sido feito antes. Alguém dedica enormes volumes a cada um dos livros da Escritura; nós, como se vê, seguimos caminho muito diferente.
2. Trazem várias citações do hebraico, do aramaico e dos Setenta, o que também é novo e muito valoriza a nossa edição.
3. Podem ser impressas num livro independente, mesmo num pequeno volume, como as escrevemos. Quem é que, não tendo consigo a Bíblia Sagrada, de modo a poder consultá-la rapidamente, ou antes, quando a lê, pode apresentar tais Anotações?
4. Elas podem ser impressas com a Bíblia, ao modo das que fez Vatablus, e que mereceram grande aceitação, embora não expliquem o nosso texto mas não sei que edição hebraica.
5. Acrescentámos no fim do livro explicações de todas as expressões usadas na Vulgata, que trazem grande luz ao entendimento de toda a Escritura.
6. Acrescentámos também um copioso índice, mas ao mesmo tempo breve, como é nosso hábito, onde cada um pode encontrar facilmente quase tudo o que quer.
7. Preparámos ainda um segundo índice, por ordem alfabética, de frases selectas da Escritura, que pode substituir a concordância; contém quase tudo o que pode ser usado nos sermões, nas citações e nas meditações.

Os Aforismos, dedica-os a Nossa Senhora nos seguintes termos:

Publiquei há pouco, em nome do vosso Filho, ó Virgem Santíssima, as Anotações a toda a Sagrada Escritura; não encontrei ninguém a quem com mais vantagem pudesse dedicar o livro. Mas, depois do Filho de Deus, a quem dedicaria esta obra senão à Mãe de Deus?
Aceitai, pois, ó Sacrário da Sabedoria divina, este livrinho ordenado com frases de sábios ilustres e guardai-o com a Vossa protecção; promovei-o, para que ajude à salvação eterna de muitos.
Ámen.


É muito elucidativo, para medir a importância de Manuel de Sá, ver o que se passou com as edições das suas obras:
Os Escólios aos Quatro Evangelhos (Scholia in quatuor Evangelia, ex selectis Doctorum sacrorum sententiis collecta. Per R. P. Emanuelem Sa, Doctorem Theologum Societatis Iesu. Addita et quaedam ab eodam Auctore) saíram «Ex officina Plantiniana, Apud Viudam, et Ioannem Moretum», em Antuérpia, em 1596.
Tiveram reedições em Lião, 1602, 1610 e 1620; Veneza, 1602; Colónia, 1612 e 1620.
As Anotações a toda a Sagrada Escritura (Notationes in totam Scripturam Sacram, Quibus omnia fere loca difficiliora breuissime explicantur; tum variae ex Hebraeo, Chaldaeo et Graeco lectiones indicantur. Opus omnibus Scripturae studiosis utilissimum, certe a plurimis diu multumque desideratum), foram editadas em 1598.
Tiveram reedições em Lião, 1601, 1609; Mogúncia, 1610; e Colónia, 1610, 1620.
Os Aforismos dos Confessores (Aphorismi Confessariorum ex Doctorum sententiis collecti) foram editados em Veneza, em 1595, e tiveram numerosas edições nos 15 anos seguintes.
Dos muitos elogios que são feitos a Manuel de Sá, veja-se este na sua linguagem espanhola e barroca, que acentua a ideia da simplicidade e profundidade dos seus escritos:

De rara viveza de ingenio, como reconoce hoy el orbe literario, la abundancia fértil de doctrina y de discurso, la concisión de voces en estilo elegante y claro, tan sucinto y tan puro como su apellido; cada sentencia y aun cada palabra un diamante con muchos bril­los y mucho fondo en poco cuerpo, merecie­ron que le comparase la elocuencia a la inmensidad profunda del río Marañón en aquel sitio donde estrecha toda la presunción, y majestad de casi ochenta leguas de boca a tan breve arre­batado distrito, que casi se puede avanzar de un salto hallando-se en el la profundidad sin latitud. (Cienfuegos)

Ou este em latim, em que se declara que é perito em três línguas (hebraico, grego e latim) e que se aplicou à correcção da edição dos Setenta:

Trium linguarum peritus in adornandam Romanam Septuaginta editionem operam suam contulit.

Sobre as imagens: a de cima é o rosto das Notationes; a do meio, uma edição dos Scholia; a do baixo, uma dedicatória do autor a S. Francisco de Borja.

22 março 2007

A BEATA ALEXANDRINA E A EUCARISTIA

Uma vez, não há muito tempo, um bispo bracarense, professor universitário, veio a Balasar. Na altura da homilia, dirigiu-se à assistência apoiado num texto escrito. Concluiu a alocução com a leitura do Hino aos Sacrários da Alexandrina. No final da Eucaristia, um sacerdote comentou com ele: «Sabe, Sr. Bispo, qual foi o momento melhor da sua homilia? Foi quando citou a Beata Alexandrina». Eu também lá estava e sei que foi mesmo assim.
Os escritos da Beata Alexandrina são muitas vezes duma qualidade que nos deixa espantados, sabendo que a sua instrução escolar era tão limitada.
No Sítio Oficial, há uma página Mensal (http://alexandrinabalasar.free.fr/pagina_mensal.htm) onde se vem a apresentar um pequeno livro, preparado na Itália; está a ser traduzido para umas seis línguas. Da página do próximo mês, deixo aqui algumas citações. Fala Jesus:

Longe do Céu, longe de Jesus está todo aquele que está longe do sacrário.
Eu quero almas, muitas almas verdadeiramente eucarísticas.
O sacrário, o sacrário, oh, se fosse bem compreendido o sacrário!
O sacrário é a vida, o sacrário é o amor, o sacrário é a alegria e a paz.
O sacrário é lugar de dor, é lugar de afronta e lugar de sofrimento:
O sacrário é desprezado.
O Jesus do sacrário não é compreendido! S (11-09-53)

Minha filha, minha filha, luz e estrela eucarística, (...)
Escolhi-te como vítima para tu continuasses a minha obra de redenção.
Pus no teu coração o amor, o amor louco pela Eucaristia.
É graças a ti, é à luz de este fogo que tu deixaste acender que muitas almas, guiadas por esta estrela escolhida por mim, transportadas do teu exemplo, se transformarão em almas ardentes, em almas verdadeiramente eucarísticas.
Pobre mundo, sem a Eucaristia! Pobre mundo, sem as minhas vítimas, sem hóstias imoladas comigo continuamente!
Eu quero, minha filha, diz que eu quero um mundo novo, de pureza, um mundo todo eucarístico. S (05-01-52)

Diz às almas que Me amam que vivam unidas a Mim durante o seu trabalho.
Nas suas casas, seja de dia seja de noite, ajoelhem-se muitas vezes em espírito e de cabeça inclinada digam:
“Jesus,
Eu Vos adoro em todo o lugar onde habitais sacramentado;
Faço-Vos companhia pelos que Vos desprezam,
Amo-vos pelos que não Vos não amam;
Desagravo-Vos pelos que Vos ofendem.
Jesus, vinde ao meu coração!”
Estes momentos serão para Mim de grande alegria e consolação.
Que crimes se cometem contra Mim na Eucaristia! S (02-10-48)

Algumas pessoas acharão de lamentável ingenuidade que faça estas citações. Para esses, hei-de falar aqui um dia do que foi o jejum da Alexandrina.

Sobre a imagem: a fotografia da Alexandrina acima integra um conjunto em que foram fotografadas várias pessoas; foi tirada na Trofa quando um dia ela ia a caminho do Porto. Tem a particularidade de a Beata estar sentada, o que é caso quase único. Até há pouco esta fotografia era desconhecida em Balasar.
O S, seguido de uma data, no fim das c itações, é abreviatura de Sentimentos da Alma, um volumoso diário da Alexandrina; talvez umas 3.000 páginas A4 dactilografadas, não menos.

21 março 2007

QUE ESTRANHO!

Que estranho!
Quando oferecemos cinco euros na igreja parece-nos uma quantia considerável, mas não o é quando vamos ao supermercado.

Que estranho!
Sessenta minutos na igreja parecem intermináveis, mas não o são frente ao televisor, quando nos dedicamos a alguma actividade desportiva ou a outro passatempo.

Que estranho!
Como é difícil a leitura dum capítulo da Bíblia, e é tão fácil ler as 200-300 páginas do último best-seller!

Que estranho!
Não sabemos falar quando rezamos, mas falamos tão bem quando murmuramos do vizinho.

Que estranho!
Precisamos que nos informem com duas ou três semanas de antecedência para incluir na nossa agenda um encontro religioso, mas não temos dificuldade em ajustar os nossos programas para um acontecimento social.

Que estranho!
Entusiasmamo-nos quando um jogo de futebol é prolongado no tempo suplementar e ao contrário lamentamos se uma homília se alonga alguns minutos mais que o costume.

Que estranho!
As pessoas afanam-se a tomar os primeiros lugares para um evento desportivo, e escolhem os últimos na igreja.

Que estranho!
Como é difícil partilhar algum passo do Evangelho, e é tão fácil falar de qualquer outro assunto!

Que estranho!
Todos queremos ir para o Paraíso, desde que não nos peçam que creiamos, que nos envolvamos, que falemos ou façamos alguma outra coisa.

Tradução livre duma página italiana

19 março 2007

FRIVOLIDADE

Acho muito curiosa a quantidade de teatros que existia na Palestina ao tempo de Jesus Cristo. Havia-os pelo menos em Cesareia Marítima, em Bet-Shean, na Samaria e em Jerusalém (sobre estas cidades, informe-se neste vasto site: http://www.bibleplaces.com/index.htm). E se passássemos para o outro lado do Jordão havia logo o de Gerasa (a «Pompeia do Oriente») e outros.
Que levaria as autoridades do tempo a erguer tão dispendiosos equipamentos de cultura, como hoje lhes chamaríamos? Verdadeiramente, não sei. É possível que os livros de Flávio Josefo esclareçam isto, mas nunca tive tempo para os ler a eito (veja-os aqui em inglês: http://members.aol.com/fljosephus/works.htm). Mas não me custaria muito a crer que se tratasse de monumentos à frivolidade.
Nos Evangelhos estes teatros nunca são mencionados. Mas talvez se encontrem lá alguns indícios deles.
Quando Jesus chama hipócritas aos fariseus, e fá-lo frequentemente, está a chamar-lhes (ao menos segundo o texto grego) actores, farsantes, que é o que a palavra quer dizer na origem.
Mas vejam-se também estas suas palavras:

A quem, pois, compararei os homens desta geração? A quem são semelhantes?
Assemelham-se a crianças que, sentados na praça, se interpelam umas às outras:

«Tocámos flauta para vós e não dançastes!
Entoámos lamentações, e não chorastes!» Lc 7, 31-32

Estas crianças, pelo menos assim parece, estão representar. Estarão a imitar actores?
No mundo romano são conhecidos dois textos famosos, embora de datas posteriores, em que se associam os espectáculos cénicos à frivolidade, à alienação – como hoje acontece na televisão, principalmente.
O mais célebre é de Juvenal. Escreve ele:

... [populus Romanus] qui dabat olim
imperium, fasces, legiones, omnia, nunc se
continet atque duas tantum res anxius optat,
panem et circenses.

Em português:

... [o povo romano] que noutro tempo distribuía o poder, a administração, as legiões, tudo, agora, voltado para si, deseja só duas coisas, pão e espectáculos.
(
Sátiras, 10, 78-81)

O segundo é de Plínio, o Moço, que se encontra em Roma e aproveitava o tempo para trabalhar. Numa carta, explica como consegue concentrar-se:

"Quemadmodum" inquis "in urbe potuisti?" Circenses erant, quo genere spectaculi ne levissime quidem teneor. Nihil novum, nihil varium, nihil, quod non semel spectasse sufficiat.

Em português:

- Como pudestes fazer isso em Roma? – perguntas. – Havia jogos de circo e nada me atrai para esse género de espectáculos. Não há neles nada de novo, nada de original, nada que não baste vê-los uma única vez.

Já se pensaria mais ou menos assim na Palestina do tempo de Jesus? Sendo os teatros foco de cultura helenística, pagã, é natural que a atitude mais divulgada fosse de franca recusa, como afrontamento ao culto do Deus único.

Imagens: a de cima representa o teatro de Cesareia Marítima, a de baixo o de Bet Shean.

18 março 2007

JAMAIS ALGUÉM FALOU ASSIM!

Um dia o Sinédrio, o órgão máximo da autoridade do Templo de Jerusalém e também a autoridade judia máxima, mandou os seus guardas prender Jesus. Eles foram, mas não O prenderam. Justificaram-se dizendo que «jamais alguém falou assim» (Jo 7, 46).
Não é difícil deduzir que Jesus Cristo fosse um excelente comunicador, que se exprimia muito bem. Um líder, como Ele foi, que usava principalmente o recurso da palavra para mobilizar as multidões que atraía a Si, tinha de saber servir-Se bem dela. E eram milhares de pessoas, ao menos em certos momentos do seu ensino. Vinham de longe, fazendo custosas caminhadas a pé. E permaneciam junto dele dias seguidos.
Ouçamos um texto evangélico de grande efeito oratório:

Que fostes ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento?
Que fostes ver, então? Um homem vestido com roupas finas? Os que usam trajes sumptuosos vivem regaladamente e estão nos palácios dos reis.
Que fostes ver, então? Um profeta? Sim, Eu vo-lo digo, e mais do que um profeta. É aquele de quem está escrito:
Vou mandar à tua frente o meu mensageiro;
que preparará o caminho diante de ti.
Digo-vos: Entre os nascidos de mulher, não há profeta maior do que João, mas o mais pequeno no Reino de Deus é maior do que ele.
Lc 7, 24-28

Temos aqui um singular elogio a João Baptista – o elogio é quase um lugar-comum da oratória.
O início da citação é constituído por três segmentos bastante paralelos, onde a interrogação retórica ocorre seis vezes.
Mas em cada segmento a segunda interrogação funciona também como resposta à primeira. Assim: «Que fostes ver ao deserto?» Resposta (hipotética): «uma cana agitada pelo vento»...
Há aqui um processo afim das chamadas réplicas e tréplicas: Jesus imagina uma resposta, a réplica, e argumenta contra (tréplica).
Mas esta sequência de interrogações destina-se a criar a expectativa, a fazer mistério, para a revelação que vem a seguir e que esclarece o sentido da pessoa do Baptista.
Por duas vezes, Jesus assume a sua autoridade verdadeiramente oracular («Eu vo-o digo», «Digo-vos»); na segunda vez, recorrendo a um jogo de palavras, quase um paradoxo («o mais pequeno … é o maior»), vai mais longe que a citação de Isaías.
É sem dúvida um texto retoricamente rico, que se repete quase ipsis verbis em Mateus (Mt 11, 7-12).
A alusão aos palácios dos reis faria certamente um efeito que nos pode escapar, pois que o Baptista não pregava longe de Jericó, onde Herodes o Grande mandara levantar três palácios. Quanto às canas agitadas pelo vento, pelos vistos ainda hoje se vêem por lá canaviais.
Repare-se no resultado produzido pela alocução:

E todo o povo que O escutou, bem como os cobradores de impostos, reconheceram a justiça de Deus, recebendo o baptismo de João. Mas, não se deixando baptizar por ele, os fariseus e os doutores da Lei anularam os desígnios de Deus a seu respeito.
Lc 7, 29-30

Estão aqui os pobres – o povo –, mesmo os cobradores de impostos, tidos por marginais, mas que aceitam a mensagem de Jesus Cristo, e os que têm poder – os doutores da Lei e os fariseus que a rejeitam.

A imagem representa a Pregação de S. João Baptista, de Diogo de Contreiras, pintor maneirista português do séc. XVI.

17 março 2007

O PORTAL DA IGREJA DO CONVENTO DE CRISTO DE TOMAR

A referência que fiz a Sevilha a propósito de Paio Peres Correia sugere-me umas palavras sobre «o maior arquitecto português do séc. XVI», João de Castilho, que trabalhou na obra da catedral desta cidade, donde foi depois sucessivamente chamado: para a Catedral de Braga, para a Matriz de Vila do Conde, para o Convento de Cristo em Tomar, para o Mosteiro dos Jerónimos, para a Fortaleza de Mazagão. É um homem pouco divulgado, certamente em parte ao menos por ser natural de Castillo, na Biscaia, e não português.
Chamado em 1515 para a igreja do Convento de Cristo em Tomar, depois de provavelmente ter passado por Viseu, «esculpe», em réplica à famosa janela de Diogo de Arruda, o belíssimo pórtico, que data e assina. Cabe-lhe também abobadar o templo. Sobre o portal de Tomar, exprime-se assim o Prof. Pedro Dias:

Comecemos pelo portal. Aí, junto à base do lado direito, João de Castilho deixou a sua assinatura e a data de conclusão da obra em iniciais e abreviaturas: «João de Castilho construiu em 1515» (ver imagem ao fundo). E uma construção que se filia na corrente peninsular que a historiografia tradicional tem chamado de isabelina, isto é, do tempo de Isabel, a Católica, num gótico final complicado, redundante, com elementos dificilmente conciliáveis e, em geral, sem grandes volumes. Notam-se, no entanto, algumas novidades, um certo barroquismo, que terá de se imputar ao contributo dos canteiros locais e até à adopção da estética lusitana, ali tão patente na obra dos Arruda.
O vão da porta tem terminação semicircular, com arquivoltas constituídas por colunelos finos e intercolúnios com decoração variada, em que alternam os grutescos proto-­renascentistas com a funda folhagem, na qual os pedreiros introduziram pássaros, amores, etc.
As estruturas góticas ainda estão presentes, mas com uma complexidade maior que o habitual, e, se esta portada ainda não atingiu o estádio do que classificamos como manuelino, respira já de um ar que o anuncia para breve. A parte superior faz lembrar composições coevas castelhanas, com pilaretes ou agulhas a subirem na vertical e a dividirem a página de fundo em três corpos,
nas quais se sobrepõem mísulas-dosséis que suportam e abrigam esculturas sacras de talhe rude, mas de bom efeito plástico. Um dossel avança a proteger toda a construção, com uma pequena abóbada de nervuras e o arco belamente debruado com cairéis em forma de corais. No eixo distinguem-se a figura de Nossa Senhora com o Menino ao colo e, inferiormente, a esfera armilar que dois amores sustentam sobre uma urna de feição renascentista. Atente-se ainda na ligação do portal às paredes laterais, conseguida por João de Castilho através da complicação das bases dos botaréus e da colocação de enrolamentos estriados horizontais sem qualquer outra função que a decorativa.

Imagens: são três pormenores do portal da igreja do Convento de Cristo. No último vê-se a assinatura de João de Castilho referida pelo Prof. Pedro Dias.

15 março 2007

PAIO PERES CORREIA NA CONQUISTA DE SEVILHA

É por iniciativa de Fernando III que, a partir de 1246, se iniciam os pre­parativos para o assalto a Sevilha. Será uma acção da maior envergadura. A Crónica Geral de Espanha, que segue um texto anterior da responsabilidade de Afonso X, destaca o papel de primeiro plano que aí desenvolveu o Grão-Mestre de Sant’Iago Paio Peres Correia.
A sua acção verificou-se não só no teatro das operações, mormente na margem direita do Guadalquivir, mas no próprio conselho em que se decidiu a estratégia a adoptar. Veja-se a narrativa que regista o conselho de Fernando III, havido em Jaén, «com seus ricos homees sobre qual o logar hiria ou que maneira teerya na guerra»:

E a esto cada huu dava sua divisa, segundo seu entender. Mas o meestre dom Paae Correa e outros boos cavaleiros e muy sabedores de guerra disseron a el rey que fosse cercar Sevilha e que, se a cobrasse, que per ella cobrarya todo o al e que seria mais sen trabalho e con mais pequena custa e sem muyta lazeira d’alguus. Mas esto contradisseron outros, dizendo que Sevilha era logar grande e muy pobrado e que non seria muy ligeiro de cercar mas pero se el rey tal cousa quisesse cometer, que primeiro compria correr e estragar a terra per alguas vezes e, depois que a bem quebrantada tevessem e os mouros bem apremados, que entõ seria bem de a hir cercar. Mas o meestre dõ Paae Correa e os outros que primeiro conselharon o cerco de Sevilha disserõ a el rey que o tempo que posesse em corrimentos e fazer cavalgadas e cercar outros pequenos logares que melhor era de o poer sobre Sevilha e que, tomandoa, cobrava todo o al e que, por esta razon, melhor era de acabar todo per huu afam e per huu tempo que por muytos. E demais que poderia seer, se lhes dessem tal vagar, que elles se avisariã de guisa que seria depois muy forte cousa de começar e que por esto melhor seria de começar esto cedo que tarde. E, ditas estas palavras e outras muytas, acordousse el rey con todolos outros en este cõselho.

Vejam-se agora dois parágrafos da mesma crónica (cap. DCCCXXVI) em que se relatam feitos deste português durante o cerco:

(...) o meestre dom Paae Correa e os outros ricos homees que com el estavon da outra parte do ryo, segundo ja ouvistes, cavalgarom sobre Golles e cõbaterõna e entrarõna per força e inataron todollos mouros que dentro acharom e levarõ muy grande algo que hy acharom. E, em se tornando per Tyriana, sayiu a elles gram cavalarya de mouros e muitos peõoes com elles e ouverõ com elles gram batalha. E foron os mouros vencidos e mortos muytos delles e os cristãaos tornarõsse muy hõrados pera seu arreal.
E, estando em elle, os mouros sahiam a elles cada dia muy amehude e seguyãnos muyto e fazianlhes grande dano em bestas e homees de pee. Mas o meestre e os outros ricos homeens deitaraonlhe hua cilada. E os mouros, sayndo como suyam, trabalharon por se poer a salvo. Mas, ante que se acolhessem, ficarõ hy trezentos mortos e muytos presos. E seguirõnos ataa o castelo. E, des aquel dya em deante, foron os mouros escarmentados de non seguir tanto a hoste dos cristãaos.

Imagens: em cima, cavaleiro de Sant'Iago contemporâneo de Paio Peres Correia; em baixo, La Giralda, a torre árabe da Catedral de Sevilha.

12 março 2007

O MEU 25 DE ABRIL

No dia 25 de Abril de 1974 eu vestia a farda militar na Escola Prática de Infantaria, em Mafra. Estava lá desde há alguns meses.
Pude por isso saber bastante de perto o que foi o golpe de estado que depôs Marcelo Caetano, e que teve razões principalmente profissionais. Ao longo da restante parte daquele ano e sobretudo do seguinte, a situação alterou-se. Digamos que o golpe de estado inicial virou revolução de esquerda.
Eu, que tinha entrado para a faculdade em 1968 e que por isso acompanhei os ecos da agitação que corria a Europa (passei o Agosto de 1971 em Francforte, mas a trabalhar na construção civil), acompanhei também quer a agitação que precedeu mais à distância o 25 de Abril, quer aquela que lhe foi mais próxima. Nunca estive porém espacialmente muito perto dos centros mais efervescentes, que seriam certamente Lisboa e Coimbra.
Deixando para trás tudo o resto, vou agora dizer algumas palavras sobre o tempo que passei em Mafra.
Naquele curso de oficiais milicianos havia gente de muito variada procedência; mas essa diversidade de procedência geográfica não significava acentuada diversidade ideológica, pois predominava uma aceitação, nem sempre certamente muito consciente, do pensamento contestatário em voga. A mim (e a alguns mais) porém tal pensamento pouco me dizia. Eu tinha o meu caminho e, desde que me não importunassem, também não importunava os outros.
Mas fui importunado, por diversas vezes e até de diversas formas. Recordo-me que houve na altura vários levantamentos de rancho – creio que era assim que se dizia. Fui sempre obrigado a alinhar com os contestatários. Ora sempre tomei muito a mal essa violência feita à minha liberdade: achava que devia ser dada a todos a oportunidade de decidir sem constrangimentos.
Recordo um outro episódio dessas humilhações, que igualmente me marcou: estava-se aí por Novembro, e já tinha regressado do tirocínio em Angola. Pois nessa altura coube a um pequeno grupo em que fui integrado fazer uma «sessão de esclarecimento» algures em Mafra ou arredores. Fomos uma meia dúzia, ou talvez mais, de oficiais milicianos: todos disseram o que bem lhes pareceu, mas eu fui impedido de falar.
Era esta a democracia deles, irmã da de qualquer tiranete. E ainda para mais eu tinha uma preparação filosófica escolar que nenhum deles possuía.
Mas como eles diziam quando lhes convinha: «Não há machado que corte / A raiz ao pensamento». E por isso eu continuei a pensar. E não me tenho dado mal com isso: já publiquei mais de duas centenas de artigos em diversos jornais, fiz umas duas dezenas de palestras, tenho tido intervenções radiofónicas mais ou menos regulares, mas com uma aceitação que me dizem garantida, dos livros que escrevi alguns tiveram segunda edição, etc.
Há um verso do Lisbon Revisited (1923) de Álvaro de Campos que me ocorre aqui: «Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!»

Veja-se ainda isto:

A fotografia acima representa galilé da Basília de Mafra.

11 março 2007

UM HERÓI N’OS LUSÍADAS

Heróis d’Os Lusíadas serão Vasco da Gama, o seu irmão, Veloso, Vénus e alguns mais. Este a que me refiro vem lá quase por citação; por isso, estando no poema, nem propriamente personagem dele é. Chama-se Paio Peres Correia. Quem o traz à colação é Paulo da Gama, falando para o Catual de Calecute, no canto VIII, estâncias 25-26. Veja-se:

Olha um Mestre que dece de Castela,
Português de nação, como conquista
A terra dos Algarves, e já nela
Não acha que por armas lhe resista.
Com manha, esforço e com benigna estrela,
Vilas, castelos, toma à escala vista.
Vês Tavila tomada aos moradores,
Em vingança dos sete caçadores?

Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha
Silves, que ele ganhou com força ingente:
É Dom Paio Correia, cuja manha
E grande esforço faz enveja à gente.


Dentre as personalidades portuguesas que tenho estudado, foi esta uma daquelas a quem mais tempo dediquei; o caso também não é para menos. Conquistador do Algarve, como acertadamente ensina Camões, conquistou muitas mais terras à moirisma quer em Portugal quer sobretudo no Sul da Espanha, onde actuou em companhia do futuro rei Afonso X, principalmente portanto às ordens de Fernando o Santo.
As façanhas de Paio Peres Correia tornaram possível a D. Branca de Almeida Garrett; é também o protagonista de El Sol Parado de Lope de Veja (obra que não conheço); existe ainda uma outra produção literária espanhola sobre esta figura.
Na Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo-Americana, escreve-se a respeito de Paio Peres Correia:

Fantasías aparte, es innegable que su nombradía se asienta en una vida militar llena de gloriosos hechos, como lo demuestra el que se le confiase el mando del ejército español en aquel período verdaderamente heroico de la Reconquista.
Fue Gran Maestre de la Orden de Santiago y tanto los monarcas portugueses como los castellanos, se disputaran el honor de tenerle à su servicio.

Sobre as imagens: a de cima – uma rosácea sexfólia – pertenceu à igreja paroquial da terra natal de Paio Peres Correia, onde portanto ele terá sido baptizado; a de baixo é fragmento dum documento de Afonso X: no final da sua segunda linha lê-se o nome «Pelay Perez, maestro de la Orden de la Cavalleria de Santiago», que é Paio Peres Correa.
Se se clicar sobre as imagens, elas são editadas no seu tamanho de origem.

10 março 2007

DOIS POEMAS DA BEATA ALEXANDRINA

A cultura literária da Beata Alexandrina era reduzidíssima, mas os seus escritos erguem-se apesar de tudo, muitas vezes, a um alto nível poético.
Embora haja casos de textos que escreveu em verso tradicional, não deixou nenhuns em verso livre, realidade literária que sem dúvida desconhecia. Desde cedo porém os editores italianos puderam verificar que a dinâmica interna, o ritmo de muitos fragmentos seus pedia uma disposição na página que não fosse a da mera prosa. É por isso que, na sequência do que eles fizeram, também eu apresento neste visual os dois “poemas” abaixo.
O primeiro faz-me lembrar o tom oralizante, aparentemente prosaico de alguns trechos de Álvaro de Campos, como o destes versos do
Aniversário: «Pára, meu coração, não penses! / Deixa o pensar na cabeça!»
No segundo, a imagem da escola, que parece mesmo remeter para a sala de aula, também a acho original para o tratamento do tema amoroso, que usualmente se socorre de símbolos mais padronizados.
Evidencia-se também em ambos um muito são radicalismo, de quem só se satisfaz quando chegou ao extremo.

Fala, fala, meu coração,
diz ao menos nestas linhas quanto desejas amar o teu Jesus!
Fala, fala, coração meu,
diz ao teu Jesus que só a Ele queres e que só nele queres descansar!
Não canses, não deixes de falar do amor!
O amor que é amor, verdadeiro e puro amor,
não pode calar-se,
não pode deixar de manifestar-se,
tem que falar e provar que ama sempre:
ama de dia e de noite, ama na dor e na alegria, ama na exaltação
e, se é amor verdadeiramente puro, ama mais ainda quando é humilhado.
Oh, amor, como tu és grande e forte!


Ó Jesus, onde poderei encontrar a escola do vosso amor?
É com certeza no vosso Divino Coração,
é aí que eu posso aprender a amar-Vos
e com aquele amor por o qual o meu coração suspira.
Ó Jesus, ó Jesus, dai-me lugar,
deixai-me entrar para lá viver,
Vos amar,
para de amor morrer.

09 março 2007

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE O CADC

O Dr. Abel Pacheco foi membro-fundador duma corajosa associação juvenil – o Centro Académico da Dempocracia-Cristã –, ou CADC, em abreviatutra, que nos alvores da República soube remar contra a maré e defender as cores do seu Catolicismo. No princípio dos anos 40, numa homenagem a outro membro-fundador daquela instituição, recordou-a assim:

Não admira pois que, no advento da República, a guerra à Igreja fosse preocupação dominante. Era o ódio torvo que mandava e a separação violenta da Igreja do Estado, com desprezo absoluto dos compromissos firmados pela Concordata; a confiscação dos bens da Igreja, a expulsão das ordens religiosas, a laicização do ensino, a instituição das Cultuais e a lei do divórcio, além de outras medidas violentas contra os católicos, mostravam bem, pela pressa com que foram tomadas, que o espírito de seita, aberta e claramente anti-religioso, se preocupava menos com o bem-estar material do povo do que com a ruína da Igreja, que se chegou a profetizar no período de três gerações.
Neste ambiente de hostilidade aos princípios basilares da religião do povo português, nasceu no Porto, sob o manto protector da Igreja Católica, o Centro Académico de Democracia Cristã, cuja divisa era Deus, Família e Pátria. No seu grémio cabiam todos os estudantes católicos, qualquer que fosse o seu ideal político, desde que este não pretendesse absorver o ideal superior do fim espiritual do homem. A César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus – tal era o nosso lema.
Os fundadores eram poucos a princípio, mas o número de sócios subiu depressa, apesar de constituir um acto heróico a afirmação pública da fé católica.
Entre os seus sócios fundadores estava Abílio Garcia de Carvalho, que primava pela sua assiduidade verdadeiramente exemplar e pelo estudo consciencioso dos problemas católicos.
Era nosso Director Espiritual o cónego Dr. José Correia da Silva, hoje ilustre Bispo de Leiria. Exercíamos a nossa actividade em estudos sociais católicos tendo como guia a encíclica de Leão XIII – Rerum Novarum. Reuníamo-nos todas as quartas-feiras à noite na sede da Associação Católica, instalada na rua de Passos Manuel, e discutíamos amplamente as teses previamente anunciadas.

Então como hoje, sempre houve quem fosse à luta.

08 março 2007

A DIVULGAÇÃO DA BEATA ALEXANDRINA

Dizer que a Beata Alexandrina está divulgada um pouco por todo o mundo é exagerado. Certamente o seu nome não terá penetrado na imensa e populosa China, na gigantesca Rússia e nos países muçulmanos… Mas se exceptuarmos estes casos, que representarão quase metade da superfície habitada do planeta, à maior parte dos restantes países ele já lá chegou. Ela é conhecida desde o Canadá à Argentina, desde a Índia à Tailândia e ao Vietname, no Japão e nas Filipinas, na Oceânia, e naturalmente nos países europeus. Muito conhecida? Não, salvo algumas excepções.
O país onde ela foi mais estudada e divulgada é a Itália. Até o ex-presidente da república Óscar Luigi Scalfaro era ser admirador.
Na Irlanda, na Escócia e no restante Reino Unido, está também muito divulgada. Na Irlanda, há mesmo a Alexandrina Society, que envia o seu boletim para cerca de 1.000 destinatários. Está também bastante divulgada nos EUA, no México e em toda a América Central e do Sul.
Há livros que a divulgam em línguas menos comuns, como japonês e tailandês.
Actualmente, algo como uma equipa de seus admiradores e estudiosos, difunde-a de modo concertado, produzindo livros, fazendo traduções e mantendo bem activo o seu Sítio Oficial.
É esta a extraordinária figura que apadrinha o blogue que o leitor está a visitar.
Veja-se este notável retrato que dela exarou o brilhante médico Dr. Gomes de Araújo:

A expressão de Alexandrina é viva, perfeita, afectuosa, boa e acariciadora; atitude sincera, sem pretensões, natural. Não há nela ascetismo, nada untuoso, nem voz tímida, melíflua, rítmica; não é exaltada nem fácil a dar conselhos. Fala de modo natural, inteligente, mesmo subtil; responde sem hesitações, até com convicção, sempre em harmonia com a sua estrutura psíquica e a construção sólida de juízos bem delineados em si e pelo ambiente, mas sempre, repetimo-lo, com ar de espontânea bondade que o clima místico que desde há tempos a circunda e que, parece, não foi por ela provocado, não modificaram.

Nota - Atendendo a que alguns comentadores tinham claramente ultrapassado os limites do aceitável, decidi ocultar temporariamente todos os comentários. J.F.

07 março 2007

DERAM-LHE TANTAS TALEIGADAS QUE ELE MORREU

Estamos em 1837 numa freguesia barcelense. Melhor, em duas, como se vai ver.
O reitor Afonso e Abreu foi por qualquer razão a uma freguesia vizinha e lá deram-lhe tantas taleigadas que pouco adiante morreu.
O que se sabe da sua vida é pouco. Mas sabe-se que foi um liberal ferrenho, ao contrário de quase todos os outros párocos da sua vizinhança.
Disso não se pode concluir que ele fosse pior nem melhor que os seus colegas; os documentos não no-lo dizem. Mas contam outras coisas.
Quando, em 1826, foi preciso jurar a Carta Constitucional, ele foi muito afoito na aceitação. Onde todos iam apor timidamente a assinatura, por ter que ser, ele jurou individualmente, «voluntariamente», como fez questão de registar (ver na imagem). A sua atitude valeu-lhe depois a prisão.
Quando os liberais chegaram ao poder, conseguiu, não se sabe bem por que artes, a anexação duma freguesia vizinha, cujo pároco foi expulso.
Mas os anos passaram e a morte veio ao seu encontro: uma morte violenta cujas razões não estão explicadas.
O pároco expulso, que acabará por retomar o seu lugar, era um homem meticuloso, cumpridor, obediente à autoridade eclesiástica, com cujas determinações se identificava. Mas da humilhação não se livrou, como aliás muitos outros.
Se alguns tinham suspirado pela revolução liberal, a maior parte só a associava aos piores momentos do Terror da sua antepassada francesa. Se porém não se chegou a tais extremos, ela trouxe gravíssimas humilhações à Igreja. Basta lembrar o cisma de dez anos então gerado e a extinção das Ordens Religiosas: um verdadeiro cataclismo.
Onde nos leva isto? Ao simplismo com que hoje se lida com estas situações. Colocam-se de um lado os bons – isto é, os vencedores – com quem as pessoas se julgam identificadas, e do outro os maus, os vencidos, com quem ninguém quer alinhar.
Bem se sabe que a história esquematiza, mas, porque se sabe, há que estar em defesa face a esses primarismos.

02 março 2007

«ANTES DO DEGELO»

Agustina Bessa-Luís é, entre os escritores portugueses, um dos pouquíssimos que conheço pessoalmente. Tenho alguns livros dela autografados, um até com uma muito simpática dedicatória, de há uns 20 anos atrás. Embora possua o seu romance Antes do Degelo (Prémio Camões) e o tenha folheado com muito pormenor, não li dele senão algumas páginas.
O que me leva a referi-lo é uma curiosidade. Na edição que possuo, a capa está protegida, digamos que encapada. E nessa segunda capa há uma imagem duma casa apalaçada em ruínas (muito semelhante à da fotografia ao lado). Tal casa fica numa freguesia rural do concelho de Vila do Conde, freguesia que conheço bem (mas donde não sou natural) e sobre que publiquei uma monografia.
A casa pertenceu a uma ilustre família, a dos Cavaleiros Ferreiras d’Eça, cuja genealogia conhecida recua aos primeiros tempos da nacionalidade.
No Museu Nacional de Soares dos Reis, no Porto, existe um bem interessante Lintel de Cavaleiros, partido a meio e que remonta ao séc. XV. No Convento de S. Francisco de Vila do Conde estão sepultadas três gerações destes Cavaleiros. Num dos túmulos guardam-se os restos mortais de D. Jerónima e seu marido, que viveram no princípio do séc. XVII. Também é curioso que, antes de casarem, ele tenha sido «queimado em estátua», certamente por não ser considerado pretendente digno da muito rica Jerónima d’Eça – mas não só por isso.
Agustina Bessa-Luís passou algum tempo da sua adolescência em Cavaleiros. A casa vem também referida no seu conto O Soldado Romano.